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  • Pedro Lobato Moura

HERANÇA

HERANÇA.

Dedicado a meu tio, Pedro Bueno Lobato.

Contador de histórias.

A voz do diabo, a coisa indizível, o estado alterado? Eu fui lá.

Tem voz que é doida, tem voz que é esperta - que pariu Mateus, mas não quer embalar.

Meu avô sempre diz: "Ser louco é pra quem pode, não é pra quem quer".

Vozes.

Segundo Platão, Sócrates, em suas investigações, interrogou os poetas sobre sua arte. Concluiu que os poetas, assim como os profetas, nada sabiam de fato sobre a arte que exerciam, mas eram inspirados, recebiam das Musas seus dons. Chamou de loucura, mania divina, tal inspiração.

O próprio Sócrates ouvia uma voz sobrenatural, que lhe dizia apenas o que não fazer.

Muitos parentes meus sabem o que é isso: Meu avô sempre conta, em seu cínico tom, sobre um primo nosso, escritor de um livro em coautoria com Nossa Senhora. Meu bisavô, pai de minha avó materna, foi espírita, antes de se tornar o conhecido pastor presbiteriano. Comunicava-se com o além. Dizem que um dos filhos dele, tio Teo, ceia com etês.

Tio Pedro.

Eu tenho um tio chamado Pedro, irmão da minha mãe. Ele hoje se encontra do lado de lá.

Meu tio Pedro contava piadas, perguntava charadas e desenhava jogadas.

Sentava com seu corpão, abraçado ao violão, e entoava: “Eram duas caveiras que se amavam...”

Escreveu um livro de poemas, “O mar dentro do homem”.

O cantor.

Galo cantou, à meia-noite, e o cantor dormiu.

E de manhã, galo cantou, e o cantor se acordou.

Não era o mesmo cantor, nunca dormiu, nunca acordou.

Galo cantou.

O sonho.

Então, tive um sonho. Estávamos na sala da casa da vovó, os tios, minha mãe, meu avô, alguns outros parentes e contraparentes... A mesinha de vidro ao centro, com o pequeno candelabro de Israel... O órgão ali, os sofás... Havia briga, disputas de família, aqueles momentos de acerto de contas, todos se acusavam... foi quando, ali mesmo, notei o funeral.

Era no chão, num cantinho afastado da sala. Ali estavam duas meninas, velando um corpo, rezando uma ave-maria. Chego mais perto, percebo que o corpo é, na verdade, uma espécie de bastão. Olho mais de perto ainda, é um pedaço de pau de goiabeira com umas fitas amarradas, algumas medalhinhas, repousando numa caixa de papelão forrada com panos. Olho para uma das meninas, ela está cantando hinos, séria, lendo num caderninho. Deve ter uns doze anos. Me oferece o caderninho, pedindo para eu cantar com ela. Tenho um violão nas mãos, coloco o hinário na minha frente e tento ler as letras.

Indesejada.

Não sei se foi um pouco antes, um pouco depois desse sonho: Tio Pedro morreu, antes de completar 60 anos, de leucemia. Deixou duas filhas. Não sei se eram elas, no sonho, as meninas cantando hinos. Mas a sincronia toda me marcou: tínhamos nos aproximado um pouco mais, depois que ele, separado da mulher, voltou a morar com meus avós.

Ele tocava muito bem, um violão de sete cordas, "ontem ao luar, nós dois em plena solidão..."

O cetro.

Quando morei no bairro Concórdia, fui ver a Guarda de Congo 13 de maio tocar na festa do Rosário. Congado me deixa os olhos rasos d'água, vejo cair as fulô, choro atoa. Ô bandeirinha, bandeirinha de papel.

Dona Isabel, cem anos, vinha, Rainha Conga, com um cetro na mão, similar ao do meu sonho.

As musas.

Arthur Bispo do Rosário ficou a vida toda num hospício, executando um trabalho a mando de Nossa Senhora e dos anjos, que ele via e escutava.

Raimundo Irineu Serra, negro do Maranhão que se fez soldado no Acre, fundiu cristianismo e pajelança na doutrina do Santo Daime, recebeu hinos, fundou danças, farda, ensinou a fazer e a tomar o chá que mostra as coisas do Astral, tudo diretamente guiado por Nossa Senhora, a Rainha da Floresta.

Chico Xavier escreveu quatrocentos livros, em parceria com as vozes do além, e disse certa vez: “Minha vida foi desapropriada pelo sagrado. ”

Charadas.

Conversava outro dia com minha avó, Dinah Bueno. Lembrávamos de umas charadas que o tio Pedro colecionava. Vó disse que ainda se lembrava de muitas, e ela mesma inventara algumas. Antigamente, havia um programa de rádio com estas charadas – “charadas elegantes”! Minha bisavó, Irene di Giorgio, escutava, telefonava para o programa, decifrava todas. Era craque.

Exemplos de "charadas elegantes":

Um grito alto (1, 2). Os números se referem às sílabas da resposta. Os dois primeiros termos da frase são a charada, o terceiro termo, uma dica sobre a resposta. Então: Um, com uma sílaba: “Só”. Grito, com duas sílabas: “Brado”. Alto? Sobrado.

Branco, amarelo, verde (1, 2). Branco, com uma sílaba: “Cal”. Amarelo, com duas: “Ouro”. Verde? Calouro.

Aqui na terra tem dança de guerra (1, 3). Aqui, com uma sílaba: “Cá”. Terra, com três: “Poeira”. Dança de guerra? Capoeira.

A mulher escreveu o número com clareza (2, 1). A mulher, com duas, é “Luci”. O número: “Dez”. Clareza? Lucidez.

Esta, minha vó inventou: A mulher assinala o país (2, 2). A mulher: “Dinah”. Assinala: “Marca”. O país? Dinamarca!

Falamos também de contar histórias, mania familiar. Meu bisavô era dos bons: Vó não esquece as travessuras de Querubino, o bandido fujão, sempre arranjando jeitos criativos de escapar dos homens da lei. Histórias que seu pai, Benício, contava à luz dos lampiões, nas noites sem lua em Colatina.

Uma vez, tinha festa no presídio e Querubino arranjou um enorme foguete. Todos, prisioneiros e guardas, se reuniram para ver o foguete subir e explodir nos ares. Querubino pôs fogo no pavio e foi dizendo, “afastem-se, vai estourar, cuidado, mais para trás, mais para trás...”, e todos obedeciam, encantados. E quando foi explodir, Querubino disse, “Cuidado, tapem os ouvidos!” Deu-se o estouro, luzes no céu, fumaça. Quando o espetáculo terminou, cadê Querubino? Fugiu.

Minha mãe diz que se lembra do vô Benício contando de como Pedro Malasartes desenterrou no quintal um osso, o fêmur de um menino, e de como, com o fêmur, Pedro fez uma flauta. E meu bisavô tirava uma flauta do bolso do casaco, tocava e os netos se arrepiavam.

A filosofia.

“Amanhã, Faedo, talvez cortarás estes belos cachos teus?”, perguntou Sócrates, acariciando as madeixas de seu discípulo Faedo. Sócrates estava na cadeia, seria a véspera do dia de sua execução. Amanhã, beberia a cicuta, seu prêmio por afrontar a Polis, e obteria sua almejada Cleandra, a Glória Imorredoura.

O costume dos gregos era cortar os cabelos, quando da morte de alguém querido.

“Sim, temo que os cortarei”, diz Faedo, choroso.

“Não, não cortarás!”, Sócrates devolve, como uma flecha. "Se estavas a me ouvir todo esse tempo, sabereis que nosso bate papo jamais morrerá. Mas, se lamentas minha morte ou temes a tua, cortarei eu também meus cabelos, pois já estamos todos mortos".

Mais ou menos assim nos conta Platão, no Faedo.

Um galo.

Estava lendo sobre as últimas palavras de Sócrates, antes da cicuta alcançar-lhe o coração: “Crito, devemos um galo a Asclépio. Não se esqueça de nos saldar a dívida”. Isso disse e fechou para sempre os olhos.

O que o mestre quis dizer? Será que ele pensava no canto do galo que se prolonga n'outro galo e nunca cessa, como no poema do João Cabral? Ou seria um agradecimento devido ao deus, pela cura da vida que é a morte?

Vida

Redonda como um planeta, mar,

aceito

o tubarão em meu seio.

Rica de corais, mar,

aceito

afogar os marinheiros

Libação.

Ao tio Pedro, ofereço uma charada, à guisa de libação:

Membro inferior fuma um de ouro (1,2).

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