CACOS DE PAULO
“Saulo, Saulo...”
Jesus. Atos 26:14.
“Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos.”
Manoel de Barros.
SOBRE O AUTOR.
Eu fui um escravo em Corinto. Não me pergunte a data: Paulo, apóstolo, passou por aqui e me batizou - meu tempo agora está suspenso.
Cristo nasceu na Galileia, Cristo morreu na cruz, ressuscitou, e acreditando nele, recebi o batismo que redime – Cristo, com sangue, comprou minha liberdade. Crendo nele, não sou mais escravo, nem puta, mas herdeiro de vida eterna.
Mas o efeito do vinho já passa, e o estômago de novo tem fome. Longe de Paulo, meu senhor (o dono da casa) já se esquece que me dera há pouco o ósculo santo e me chamara “irmão”.
Jesus Libertador, Jesus Redentor, Jesus Salvador, Jesus, evoé, renova estes odres velhos!
OS POEMAS.
Soteria.
Um santuário é onde
um dia Deus vazou?
Ali agrado quem
um dia me salvou
de me afogar. Eu sei
que Ele apenas adiou,
pois quem me fez, foi pra
morrer que me criou.
Brevidades (ou os sem-casa).
Homens antigos tinham atados
sangue e terra, herança de heróis
domadores de onças e hidras.
Eu, filho do hoje metálico,
periférico cidadão ninguém,
mais um cristão romano amém,
aguardo as promessas de Paulo
acerca do derretimento final de tudo:
em vinhos, queijo, brevidades.
O Mestre (em charadas).
O Mestre é? -
uma voz na cegueira,
uma culpa, uma queda
e a força de um mito vivido
na carne, e o perdão -
O Mestre vive?
Num excesso de falta,
num passeio mental -
e o poder de ser o Apóstolo.
Um repositório de charadas,
aboios transmitidos -
para onde levarão?
Batismo.
Ao emergir do rio: os sorrisos.
Vou morar com essa gente bonita!
Havia trevas de eons acumuladas -
Com um toque da pomba, sou novo.
Infância (a linda história).
O Salvador nascendo de um carpinteiro -
não, não digam que ele era filho de Davi -
importa que ele era pobre, da Galileia,
terra que não dá profeta.
A Sertaneja e o Anjo Visitador.
Os Magos procurando pelos becos da favela,
a encontrá-lo em um berço de estrume – consta
que seguiam uma estrela.
A inutilidade simbólica de ouro, incenso e mirra.
O Sermão da Montanha me faz chorar.
Eu também sou assim: zé ninguém abençoado,
filho da puta abençoado,
criancinha.
Gnose.
Quando sendo defumado
de alfazema, alecrim
e benjoim, Madalena
me tocou no coração.
Velha voz do mar...
Uma rosa perfumada
ela me deu, do seu pé.
Antes do meu batizado.
Quando a luz bateu em mim
foi morcego a todo lado -
dói, o ser purificado.
Vomitemos os demônios.
Quando sendo batizado,
uma linda luz eu vi.
E quando da Santa Ceia
o Pão Corpo eu consumi,
e quando do Cálix Bento
o Vinho Santo eu bebi,
a Rosa já não era planta -
dentro de mim se afinavam
os instrumentos de amar
e servir. Não sei: senti.
Ágape (místico).
No Segundo Céu,
o que me disse Cristo:
Ah, queria poder
a tudo derreter!
Véu, levanta:
somos todos
desiguais.
Escrita na areia.
Mãe amada, do hoje ausente,
escrevo na areia teu nome de água.
Eu estive na terra,
sangue meu foi ao chão.
Bebi do cálice amargo,
jejuei, vesti pó sob a lua.
Mãe amada, sim, a todo tempo
teu amor lá estava,
mornura, aconchego, chamego,
alimento, torpor...
E a lira que me deste?
E a colcha bordada?
E o puro deleite das variações?
Que eu tenha este Inimigo -
então sou incompleto
e na curva da estrada
a ele me unirei.
De Pai sou as alegrias?
Mas, como se explica a cruz?
Fazemo-nos, um ao outro, sofrer...
Por que mentimos assim aos pequeninos?
Sinto que é tarde, mãe.
Sente - meus dedos na areia.
Irmão Paulo.
Lá vem Paulo desvirtuando as meninas.
Lá vem o judeu - gentio em Cristo -
dizendo que a Graça é maior que a Lei.
Lá vem o Paulo, inflamando os escravos,
dizendo que, vindo Jesus, serão os pobres
bem aventurados.
Quantas Teclas, Terezas,
Cecílias, Luzias,
deixarão lares e noivos
por essa louca comunhão?
Quantos Timóteos, quantos Filemãos
passarão de bestas a irmãos?
Ainda que tentes, ó Paulo, irmão,
segurar os cabelos soltos,
os êxtases exaltados e a difusão geral
de santa inspiração,
é tarde demais, deixaste a tua língua solta, Paulo,
e já a Boa Nova inflama o mundo.
Proclamaste a loucura, proclamaste o amor,
proclamaste a liberdade!
Mataremos-te.
Agulha (romana).
A saber no que crê
a criatura: captura.
O ferro quente
é balança pura.
Quem passa
no vão da agulha?
Cristãos no circo.
Ó Senhor, agradeço aos romanos
pela oportunidade que me dão
de morrer como bom cristão.
Cabelos.
Prende os cabelos dela
pois são serpentes.
São lágrimas de peçonha
e risos demolidores.
Somos franguinhos
e elas, cozinheiras.
Ponham silentes de lado
as mulheres, amém. Urnas.
Para o desafogo dos homens
que ainda não são como nós.
Catarse.
Precisamos de todo esse drama -
nosso Deus é Deus que sangra.
O Criador criou a cabeça.
A cabeça criou a dor
de cabeça do Criador.
A cabeça tem fome de história,
tem o dom de transformar processos em drama.
São químicas, são descargas elétricas?
São partos, são amores, são crucificações.
Somos uns amplificadores.
Telos.
Pois eu já não devo.
Aos mitos de meus pais
- que cantam um tempo sem Alexandres nem Césares,
quando corríamos livres,
em verdade, Zagreus caçando
em honra da Grande Mãe -
oferto o sangue que ora
no pó do circo se derrama.
Olha, pai, o avô morreu lobo.
Tu viveste jumento, e eu,
que besta fui, no último momento,
fui salvo por Cristo, que me fez ovelha:
o tipo de morte
que deságua em paraíso.
Epílogo (Iguaria).
Há um Deus que nos observa
como à carne macia?
A ovelha fica tenra
mesmo comendo porcaria.
Com esta vida mais ou menos
tenho cara de iguaria?
Deus me chupe até o osso
é o que gostaria.