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INFRAMUNDO MALETA

 

 

 

Maquetes, como belos romances e outros planetas, exercem uma atração, de se querer habitar nelas, como se fossem melhores que o real. Você já quis viver dentro de um mapa bem desenhado?

 

Meu pai trabalhava no Edifício Maleta, numa gráfica, no tempo da letraset, quando existia a profissão de arte-finalista.

Meu inferno é ali, no Edifício Maleta. É para onde vai meu espectro, quando da vigília se desliga.

 

 

Aerobel! Lua Nova! Shazam!

 

 

Meu pai é mestre da pena, porém, mais ainda mestre da pinga. Um homem cheio de paixão. Eu morei muito no Senhor dos Anéis, com ele. Na Terra Média. Meu pai poeta oral, narrando os feitos dos Elfos, dos Magos e dos Anões. Meu pai cantando Beatles ao violão.

 

Um dia ele me levou à Aerobel, loja de miniaturas no edifício Maleta, comprou-me um trem elétrico, Ferrorama. Uma locomotiva a pilha, vagões, trilhos, desvios, sinais, mais alguns detalhes da paisagem, arvorezinhas.

 

Os índios Guaicupuí dizem que miniaturas aprisionam o espírito da gente. Eles permitem que suas crianças brinquem somente com animais de estimação, e quando vêm à cidade no fim do ano vender seus potes lisos e geométricos, recusam-se a admirar os presépios.

 

Tendo passado do cão tricéfalo, chega-se a uma escada rolante que, embora estejamos no inferno, sobe. No sobre-piso, os meus três departamentos do inferno, com seus demônios responsáveis: Aerobel. Lua Nova. Shazam!

 

A livraria Shazam! O cheiro das revistas daquele sebo, o infinito em pouco espaço. Meu pai era amigo do dono, o sr. A. Longabarba. Colecionadores de revistas em quadrinhos. Ali, meu primeiro Boris Valejo: nudez e grifos, loiras e dragões. Ali, Tintin: arte milifina. Ali, Valentina, Paulette. Ali, Conan, o Bárbaro. Ali, Asterix, Tumbleweeds: esquerda. Lembro-me do Borges, dizendo: Queria tanto comprar tal livro, pena que já o tenho.

 

Um louco precisa de pouco: eu até hoje sou dali – vivendo, é claro, nesse longo exílio da vida real, um soldado meio inepto, mas que, obstinadamente, sobrevive neste front tão longe de casa, meu doce lar entre os quadrinhos, o cinema americano, a música pop. A gente não mora onde dorme, mas aonde vai quando sonha.

 

Dizem que o inferno é um labirinto. Que é feito de repetições e tristes automatismos. Que por ele erramos, fazemos curvas e decidimos – esquerda ou direita e tudo tende ao circular e ao obsessivo. É o porão da vovó. É o fundo do quintal, naquela noite aziaga.

 

É o Lua Nova, bar dos piratas, onde, entre tecos e talagadas, a esquerda belorizontina da década de setenta revoluciona o mundo sem sair da casa da mamãe.

 

Meu pai! Tem muito desemprego no Brasil, hoje.

 

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