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PAI ÁRVORE

 

 

 

Meu pai virou árvore aos poucos. Aos poucos mesmo, foram sessenta anos de mutação. Eu me lembro, na véspera de meu aniversário de trinta anos, eu ainda ouvia suas opiniões exaltadas sobre a política e as críticas categóricas sobre a música do século XX, é claro que ditas de forma cada vez mais lenta e entrecortada pela tosse. Seus cabelos eram já uma basta folhagem verde cinzenta, os membros humanos quase não eram mais reconhecíveis, já seria um ênida, meu pai. Há quinze anos não deixava a varanda de sua casa em São Joaquim de Bicas, na beira do rio Paraopeba.

 

A tosse de meu pai, naquela tarde, me dando conselhos sobre os descaminhos de minha obra musical, não era por causa dos lenhos e dos veios de pau em que se transformavam suas entranhas. A tosse era porque, entre dois galhos finos que ele fazia de dedos, meu pai trazia, ainda, como sempre, aceso, seu cigarro de fumo guarani. Que uma árvore fume não será surpresa, árvores fumam, todos sabemos. Meu pai humano, vivo ainda, depois de tanto cigarro e pinga, isso é que era extraordinário. Agora, tornado de vez em árvore, sorve plácido seu gás carbônico, floresce uma vez por ano e é certo que, assim, ainda verá batizados e enterros de muitos parentes.

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