O professor pensa que eu sou trouxa! Chega e se apresenta: "Sou Pedro Lobato. Vim ministrar-lhes oficina de literatura". (Gemidos e urros de contrariedade e tédio percorrem a sala). O professor escreve seu nome no quadro. "Conhecem alguém famoso com esse meu sobrenome?" Eu conheço, claro. Nem todos na sala conhecem. Levanto o dedo, eu e mais algumas meninas: Monteiro Lobato! "Sim. O contador da história do Sítio do Pica Pau Amarelo. Emília, Visconde, Narizinho, Pedrinho..." Agora sim, todos se lembram, a maioria viu pela Rede Globo de TV.
O professor diz que é parente dele, do Monteiro Lobato. Não sabe bem o parentesco, primo-sobrinho-neto de 4º grau, mas é. E, como ele, conta histórias. É um legado da família. Ele então desenha o Monteiro Lobato no quadro. É mesmo habilidoso no desenho. Chama a atenção para as sobrancelhas do Monteiro, na verdade uma baita monocelha. Diz, então, que vai contar uma história de família, sobre os Lobato, que só ele sabe, um segredo.
Dã, agora todos nós saberemos.
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A história.
"Lembre-se minha menina, para se cruzar a floresta a salvo, nunca saia do caminho, nunca apanhe uma fruta do chão, e nunca, nunca confie em um homem com as sobrancelhas unidas"
Vovozinha.
Lobato morava numa fazenda de café no estado de São Paulo. O dono dela era seu avô materno, o Visconde de Tremembé, rico cafeeiro e dono de uma vasta biblioteca, que Lobato percorria na infância. Infância é mundo rês-do-chão, paralelo com o das mulheres: cuidados, lar, quintal, cozinha, tecituras, tecelagens. Escritores são homens que não conseguem superar a infância.
O nome completo do Monteiro Lobato nas enciclopédias é José Bento Renato Monteiro Lobato. Mas ele nasceu José Bento. E morreu José Renato. Este é o fato, que lhes conto. Se duvidam, pesquisem! Não acreditem em tudo que escutam! Minha história, afirmo, é real.
No interior se dizia que, quando uma pessoa tinha propensão para ser lobisomem - se, por exemplo, ela tivesse nascido em sétimo mês, ou fosse sétimo filho nascido em lua cheia, ou se houvessem as sobrancelhas grossas e outros casos na família – devia-se botar o nome nessa pessoa de Bento (ou Benta), de abençoado. Monteiro nasceu José Bento Monteiro Lobato. Estaria a salvo. Seria um bom menino. Iria até estudar direito. Mas o que tem que ser, é.
O pai do nosso Lobato chamava-se José Renato Marcondes Lobato. Era um homem distante e elegante, que não tinha tempo para o filho, que por sua vez admirava muito o pai. O menino queria ser elegante também, e aspirava herdar a bela bengala do pai, com o castão de ouro com as letras J.R.M.L gravadas. E herdou.
Ao fazer dezoito anos, bem no meio do curso de direito, morando em São Paulo capital, Lobato vai ao cartório, num fim de tarde garoento. Vai para mudar seu nome: José Bento soava deselegante, cafona, e não combinava com as iniciais gravadas na sua bengala benta. “Vou chamar doravante José Renato Monteiro Lobato! Muito mais chique”.
Saiu do cartório já na penumbra, o céu chumbo, acesos os primeiros lampiões. Aguardava a grande novidade: o bonde. Já perto de sua casa, viu que a lua cheia aparecia no céu. O resto vocês já sabem: retirado o Bento do nome, tirou-se a proteção mágica que continha o lobo dentro do Lobato. E foi assim que começaram as aventuras do escritor, correndo nu pelos matos. Assim ele conheceu os sacis de que ele conta, assim obteve o pó de pirlimpimpim.
Acreditam em mim?
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Assim foi a história do professor Pedro. Todos o encarávamos com olhares céticos, testas com rugas de incredulidade e escárnio. O professor agora buscava reconhecer algum monocelha na sala. E achou justamente o Jonathan. O Jonathan era um monocelha que de fato acreditava que tinha poderes especiais. Era um menino no mundo da lua. Um prato cheio. Depois de mais alguns casos de lobisomem trocados, todo mundo querendo dizer alguma coisa, finalmente perguntaram: "e o senhor, fessor, é lobisomem? O senhor tem sobrancelhas grossas, mas não unidas..." "Pois é, o sangue lobo em mim está mais rarefeito. Confesso que, de vez em quando, me dá vontade de tirar a roupa toda e sair correndo pelo mato, mas eu me controlo bem".
No fim o professor fez um sermão sobre a importância da curiosidade e da pesquisa, da busca pelos fatos. Foi esse o seu para-casa: descobrir a verdade.
Hoje estou trazendo o resultado: a história está toda errada, as datas e os nomes do Lobato, todos trocados. Não há menção em lugar nenhum sobre ele ser lobisomem. Pensando bem, isso é obvio. Claro que eu sou a única nerd da sala que se importou em fazer essa pesquisa – na verdade passados cinco minutos do fim daquela aula (de que todos gostaram), ninguém mais pensara naquilo. Só eu. O professor é um mentiroso, mas alguma coisa em mim não quer desmenti-lo, nem um pouco.
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O filme abaixo, A Companhia dos Lobos, de Neil Jordan, é a fonte para os dizeres da vovozinha. Vale a pena ver. Se quiser os dizeres, ver a partir dos 13 minutos.