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Livro do Cigano (falas, tramas)

Pedro Lobato Moura

TRAMAS

SANTA LUZIA

Eu e Cigano na sorveteria. Ele me pergunta, com sua voz tonitruante: “O que é que você fez, meu amigo?” O que eu fiz? “O que você fez de errado, nesta vida ou em vidas passadas, para vir parar em Santa Luzia?” Sorrio... nem te conto!

“Isso aqui é o fim! O lugar mais atrasado do mundo. Tão perto de Belo Horizonte, poderia ser avó da capital, tem a idade de Ouro Preto,

mas é um lugar onde reinam o coronelismo, o atraso, a ignorância, o preconceito, a pobreza, a corrupção, enfim, nada vinga, nada anda, meu pai bem disse, quando passou por aqui: terra ruim. Cuspiu no chão e nem desceu do cavalo, para não sujar as botas”.

Quanta amargura! Cito a beleza histórica e natural, as áreas verdes, cito as macaúbas, os pica paus, os tucanos na porta de casa.

“Você gosta daqui porque veio se esconder”, Cigano diz. “Veio fugido”, ele ri, provoca. Eu estava era atrás de uma roça, eu respondo. Cansado de Beagá, tanto prédio e asfalto. “Então vai pra Jaboticatubas! Você não está na pindaíba? Lá tem rio pra pescar. Aqui, o das Velhas já morreu”.

FALAS

LENDAS

Os antigos coronéis estão enterrados sob o assoalho da Igreja Matriz.

Dos Cavaleiros ditos Luzias, que apoiaram Teófilo Otoni, correndo a Carreira Comprida, sendo emboscados no Muro de Pedra, morrendo na rua Direita, ainda se ouve o tropel fantasma nas noites de lua nova.

O atual prefeito, imerso na fumaça do seu Carlton, cigarro branco, guardado por três pitbulls, manda e desmanda, despachando, ora de sua sala na sede da prefeitura municipal, que funciona nos prédios de um matadouro desativado, ora da sala de sua casa, que fica num bunker dentro de seu complexo industrial.

O diabo é frio.

HISTÓRIA DA SANTA LUZIA (SÉCULO II d.C.)

Luzia era uma menina de olhos verdes, filha de um rico patrício romano. Luzia estava prometida a um príncipe pagão. Um dia, numa rara saída às ruas, Luzia e suas aias notaram um grupo de pessoas de diversas proveniências que ouvia, atento, algum contador de histórias: Era Paulo de Tarso, pregando o evangelho.

Luzia ficou tomada, arrebatada, entusiasmada. Foi com o povo (escravos, crianças, senhores, artesãs, viúvas) a uma beira de rio e se fez batizar. Creu. Aceitou Jesus. Chegando em casa, escandalizou: “Não caso mais, não quero mais luxo, vou descalça alimentar os pobres, cuidar dos doentes e falar de amor”. Luzia apanhou muito por causa deste Jesus.

O pai de Luzia casou-a a força, conforme o costume. Seu príncipe pagão, quando era ainda noivo, tecera odes em grego aos olhos esmeraldinos de sua prometida. Agora, diante de sua firme intenção de marido em fazer cumprirem-se, carnalmente, as bodas, num arroubo de inspiração, a santa menina arranca, com os dedos, os próprios olhos, bem diante do perplexo príncipe, e a ele os oferece, na palma da virgem mão pingando sangue.

O moço cai de joelhos. Um anjo, então, restitui luz à menina: Olhos místicos. Assim, o homem crê: Eis Santa Luzia.

...VEIO DO RIO

Cigano me empresta o livro de Japhet Dollabela, “Santa Luzia veio do rio...” Um tesouro de histórias. Ele salienta os casos do Barão de Catas Altas, que tinha um sobrado na rua Direita.

Quando o rico barão vinha visitar seus parentes, sempre lhe eram oferecidas as melhores louças, que ele ia quebrando ao longo da visita (o tirano). No final, dava outras, de ouro.

Ouve-se que “o Barão de Catas Altas era mal, castigava assim os escravos: abria o bucho do boi, costurava o escravo lá dentro, vivo, e enterrava. Lentamente, os bichos comiam...”

O LEÃO

Os Teixeira da Costa são família importante da sociedade luziense, e mineira. Gente culta, estão entre os fundadores do Jornal Estado de Minas.

Um desses, filho do filho, dono de uma fazenda, bela área verde que enfeita a paisagem da nossa cidade besta, diz-se dele que tem um leão. Um leão de verdade, na sua propriedade.

E dizem que o cara que fazia a manutenção do leão, encarregado de levar a ração diária de 20 quilos de picanha por dia para o monárquico animal, começou a passar no açougue do seu Zé, pedir um bom bocado de frango e muxiba, cumprir seu serviço com o rei das selvas e, de volta ao lar nos fins de tarde - dever cumprido - promover generosos churrascos para a comunidade.

O VAMPIRO DO MEGA SPACE

Ouço dizerem: Antigamente, os vampiros eram nossos - Gonçalves, Souzas, Limas - e condoídos, mas resignados, cedíamos nossas belas virgens. Harmonizava-se, então, melhor o pranto dos escravos.

Hoje, com os tais vampiros de fora... nada mais é como antigamente.

TRAMAS

CAFESINHO DO WERNECK

Cigano entra na Padaria Pão Mais, na rua do Comércio. Pede um café. A bela moça de uniforme pega o copo, o pauzinho de mexer o açúcar, posiciona o copo na máquina, e de repente para, o olhar fixo na porta: entrou o dr. Werneck.

Dr. Werneck vem, pede um café com leite. A moça larga o copo do Cigano onde estava - vazio, o palitinho ali, frustrado, à espera do banho negro e quente - e vai prontamente atender o fidalguém.

Cigano reclama, irado, em alto e bom som: “Ora, meu dinheiro é igual ao dele - avá paput qui pariu!” - e sai.

FALAS

TESTES DE APTIDÃO

Cigano diz que fez dois testes de aptidão. O primeiro, feito por um psicólogo, deu que ele não servia para nada. O segundo, de um astrólogo, deu que ele não servia para quase nada. Mas poderia ser marchand.

PSICÓLOGOS

Qual a diferença entre o psicólogo e o pai-de-santo? O pai-de-santo ganha mais.

MATAR LEÕES

Cigano: “Olha, eu penso assim, todo dia temos que matar um leão, certo? Então, eu já vou logo acordando e caçando o meu leão. Pela manhã, quando estou mais bem disposto. Porque se eu deixar pra depois, amanhã, já serão dois leões, não?”

DISPONIBILIDADE

“Vamos lá em casa agora?” Eu, com as compras nas mãos, o pão das crianças, digo, não posso. Cigano me olha, cara de pouca paciência, e sai dizendo: “Pobre sofre muito”.

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