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  • Pedro Lobato Moura

Cigano, tramas

TRAMAS

O CIGANO NA FEIRA

Todo domingo, na feira hippie, há mais de vinte anos. A mesma camisa, amarela, só usa para isso. O chapéu de couro de lebre, ramenzone legítimo, anéis, relógio, no bolso um gordo maço de dinheiro.

No feirar, papear com todo mundo, lembrar os nomes de todos os feirantes, negociar à moda pré-capitalista, à moda cigana. De vez em quando, em performance, enxugar o suor da testa com um maço de notas de cinquenta.

Cigano vai à feira de uniforme, à caráter, mas não de funcionário, não de soldado: de super-herói ou de arqui-vilão.

SEMENTES, PEDRAS, OSSO

Cigano é comerciante de peças para artesãos: miçangas de madeira - sucupira, paraju, cedro, peroba - sementes ornamentais - açaí, buriti, macaúba, pau brasil (“se puser no fogo vai ver a chama vermelho-escura”), olho de boi, muru muru, tucumã (“o coco que guarda a noite”), jarina (“o marfim vegetal”) - miçangas de casca de coco, de bambu, miçangas de osso tingido de alegres cores, pedras semipreciosas esculpidas em figas, estrelas, corações, borboletas - óleo de peixe boi, dente de boto, osso da cabeça do peixe elétrico - alianças de ouro prata e bronze, crucifixos de vários tipos, tudo para se fazer terços: católicos, ortodoxos, judaicos - mashabas, djapas, juzus, guias de macumba...

JARINA

Para vender, tem que saber contar as histórias. Isto é muru-muru, veio da Amazônia, tal e tal. Este é Tucumã: Aqui dentro, dorme a noite. Isso é Jarina: o marfim vegetal! Muito valioso no exterior.

“Uma vez fui ao Acre com algum dinheiro e uns badulaques, entre eles, uma camisa do Flamengo. Conheci um caboclo que me disse ter em casa um saco de jarina. Fui ver. Era um saco que valia bem quinhentos contos. Fiz que quis-não-quis, mostrei a camisa do flamengo - os olhos do caboclo brilharam. Pela camisa, ele trocava o saco.

Olhei em volta: homem simples, com esposa e dois filhos, as carinhas de índio, bananeiras no quintal, roçado de mandioca. Na floresta têm de tudo - onde vão gastar dinheiro? Dei-lhe cem, de gorjeta, e a camisa do flamengo - levei toda a Jarina. Devo ter feito com ela uns três mil”.

KNOWHOW

“Tem que saber tudo: não só comprar os materiais, mas as ferramentas de furar, de polir, de cortar, como se faz para a madeira ficar assim redondinha?” E ele explica. “Como se faz o Bambu ficar assim polido e brilhante?” E mostra o óleo que se usa. “Conhecer as pessoas – quem usa bem o pirógrafo, quem tinge a miçanga, quem entalha a Jarina. Tudo tem que ter, como se diz mesmo em inglês, professor?”

BRINCO

E o umbigo da banana é um brinco.

SANTA

“Uma vez visitei aqueles antiquários da Lagoinha, entrei numa loja e dei com uma Nossa Senhora da Conceição muito especial. Para não dar na vista, comprei uns badulaques sem valor e a santa. Gastei em tudo 500 paus. A santa era um Vanderley Sena – sozinha valia uns três mil.”

SEBO

Sabendo que gosto de livros, Cigano me apresenta os sebos que frequenta. O dono está sentado numa cadeira, vendo o povo passar. Lá dentro do sebo apertado, um radinho antigo toca a Inconfidência AM.

Compramos neste dia um exemplar surrado do Dicionário brasileiro de provérbios, Locuções e ditos curiosos, de R. Magalhães Júnior, do qual, ali mesmo, pescamos "descobrir mel-de-pau”, versão brasileira de “reinventar a pólvora”, e “Deus é grande mas o mato é maior”, refrão dos desertores da Guerra do Paraguai.

Compramos também um Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes do prof. Rosário Farâni Mansur Guérios, onde consultamos “Altamiro” e “Altamirano”, topônimo Andaluz que passou a Portugal, nome de mirante.

COLEÇÕES

“Conhece a Casa Sales? A loja mais antiga de Belo Horizonte. Até hoje é o mesmo balcão, a mesma caixa registradora. Conheci, ainda novo, o filho do seu João Sales, o fundador. Este filho (que hoje é, por sua vez, avô) cuidava da loja enquanto o velho pai punha uma horta nos fundos”. A Casa Sales vende armas e apetrechos de caça.

“Eu observo o mundo. Por exemplo, judeus e seus negócios: Aqui mesmo funciona o pronto Socorro dos Livros, fundado, se não me engano, há 46 anos”. Visitamos a loja anciã. Como é gostoso o couro verde, vermelho, azul das capas duras daquelas encadernações. Cigano foi buscar um seu “Tarô Mitológico” que estava soltando as folhas. Agora, de capa dura, como novo em folha, parecia mais importante.

Caminhamos pelo centrão de Belo Horizonte. Cada qual com seu par de olhos.

Umas mulheres na avenida Paraná, em frente à “Nova Brasília”, caçam meias freneticamente num caixote colocado na calçada com uma placa dizendo “meias infantis sem par, cinquenta centavos cada”.

É tão singelo que os catadores de entulho daqueles ferro-velhos da rua Guaicurus, aqueles homens feios, musculosos, adiposos, de jeans surrados mostrando os cofrinhos, cuidem de gatinhos e cachorrinhos abandonados, que ficam morando entre os móveis e peças de veículos retorcidos, com seus pratinhos de água e ração.

Cigano repara: “Eita, olha o entra e sai dos puteiros. O Brasil em crise, mas a carreira de porteiro de zona está em alta”. Todos trabalham uniformizados, em duplas, e todos os “hotéis” contam com detectores de metal na entrada.

Paramos em uma banca de jornais. Respiro o cheiro das pilhas de revistas em quadrinhos, lembrança boa das coleções do meu pai.

Passa um vendedor de pen-drives, dizendo, “agora vou fumar meu beréuzim...”

Admiro a pichação, uma lata amassada de coca-cola com os dizeres: Isto é um cachimbo.

Cigano conversa com o dono da banca. “Pode observar: São dez candidatos à prefeitura,

mas todos têm rigorosamente as mesmas propostas...”

A elite deu outro golpe de estado, e a propaganda governamental que outrora dizia, “Brasil: Um país de todos”, agora diz, “Brasil: Ordem e Progresso”.

Na porta do Centro Cultural da UFMG, um grupo de maxacalis. Lembrei daquele filme, quis dizer para os índios: “Ensina-me a viver”.

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