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  • Pedro Lobato Moura

Cigano, tramas

TRAMAS

FEIRA DO LIVRO

Cigano me encontra no ponto de ônibus. De mau humor, narra:

“Fui à feira do livro. Vou te contar - ô tempos. Pergunto à mocinha: tens o livro do Pachecão?Não sei, não conheço. Eu digo, hum... E, vem cá, tens o Grande Sertão? Não sei, não conheço. Hum... Gilberto Freyre, conhece? Casa Granide e Senzala? Não, senhor… não… mas temos o último Harry Potter! Eu digo, olha, você é bem bonitinha, mas não entende nada de livros. Vai ganhar mais como garota de programa!

A garota chamou o gerente. Reclamei com o gerente: Vocês só vendem esses livros para adolescentes, com essas capas coloridas, o quê é isso: The Walking Dead? Você que fala inglês, professor, o que quer dizer isso?” Quer dizer mortos que caminham, mortos vivos, zumbis... “Então, estorinhas de múmia? Que vergonha de feira do livro é essa? Esculhambei o gerente. Ele ameaçou chamar a segurança. Eu disse, tudo bem - comprei um livro espírita e fui embora.”

Vinha o ônibus. Cigano acrescentou, vociferoz: “Uma missão para você: Encontre para mim um exemplar do Casa Grande e Senzala, usado, em bom estado. Te pago! Será a primeira venda do teu sebo”

OS NOMES DO DIABO

Cigano, em si personagem rosiano - por este discípulo peãomente roseado - vem inquirir-me sobre Guimarães Rosa: quer ler o Grande Sertão. Digo-lhe que sou fã, mostro-lhe meus exemplares autografados, presente do meu avô, que conheceu, de fato, em pessoa, nosso Homero das Gerais.

Cigano diz: “Ouvi dizer, achei curioso, que Guimarães Rosa usa mais de oitenta nomes para o diabo, nesta obra, Grande Sertão. Gostaria de anotá-los, fazer uma lista.”

Se não me engano, um estudioso, Leonardo Arroyo, já fez isso, listou-os no livro Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas. “Eita”, diz Cigano, e me mede com os olhos. “Não vê que sou inteligente? Mesmo sem ser, tenho interesses de um homem formado! Estou ficando acadêmico! Muito me alegra você, professor, me fazendo saber disso”.

ARTES DE MINAS

Mostro alguns trabalhos meus para o Cigano Altamirando, desenhos, na maioria, e algumas pinturas. Ele gosta. Me compra um retrato a óleo do meu galo preto, topetudo e bom cantor, o galo Elvis.

“Sabe do que gosto?”, Cigano pergunta. "Aquelas pinturas – como é que se diz? Arte naif? Pracinha de interior, igrejinha, festa junina, procissão, coreto... sem perspectiva, tudo visto de cima, cores fortes”. Explico que "naif", "naive" em inglês, quer dizer inocente, primitivo.

“Também gosto de imagens de santos, belos santos. Sabia que no tempo do Aleijadinho, a pessoa vestia trapo, jejuava, juntando cobres para poder pagar por uma obra dele?Aleijadinho era careiro! Naquele tempo já existia fama.”

Carrancas... cachaças... violas... licores...

ORQUÍDEAS

Cigano, orgulhoso, me mostra as espécies mais raras do seu orquidário. Uma miudinha, rosinha, florescia naquele dia. Admirando-a, pensamos em moças. Delícias delicadas. Os gregos pensavam em moços: órkhis quer dizer testículos.

“Seu tio Tavinho também é orquidófilo, não é? Vi no jornal. Estive para visitá-lo, lá em Várzea da Palma, Barra do Guaicuí. Chegando lá, não aguentei o burburinho: Disseram que o Almir Sater e o Lima Duarte visitavam o sítio dele, só se falava nisso no vilarejo. Aquilo me irritou, e fui a Pirapora ver as uvas.”

PALAVRAS

Terminei a pintura do muro e do portão. Cigano: “Cê até que gosta de trabalhar, hein? Esse negócio de pegar no pesado...” Penso: Eu?

Cigano segue: “Nunca gostei de pegar no pesado, não. Frequento academia, que é coisa chique. Agora tô meio parado, por causa da operação no bilau. Quase morri... Ainda estou usando fralda, até retomar o controle da bexiga. Seguindo orientações médicas, estou cuidando da alimentação, e quando eu melhorar, farei dança de salão”.

“Agora vamos organizar as caixas de miçanga, vamos mudar de lugar, daqui para ali, onde trabalharemos melhor”. Cigano aponta os lugares. “Aqui vai ser a recepção do nosso Espaço Holístico. Aqui vai ser um lugar sério: Ainda mais se você for dar suas aulas para crianças e jovens. Nenhum estranho vai passar dessa recepção, só os pais, em casos extremos, poderão interromper a aula que estiver acontecendo. Quero tudo muito sério, legal e direitinho. Por isso o chamei: por que confio em você”. E conta o caso do professor, até então exemplar, acusado de pedofilia, não ficou preso, mas teve a vida arruinada. Anos depois, se soube que ele era inocente. Mas a confiança que se perdeu, não se recupera mais.

Ele me pagou pelo portão e o muro. Saímos para tomar uma cerveja em comemoração. Eram seis da tarde e a Matriz tocava a Ave-Maria. O sol se punha. Cigano diz: “Você, que é o homem das palavras: como é o nome disso?” Aponta o Ocidente todo rosa. Uai... Pôr-do-sol? “Sim, mas como dizem os poetas?” Crepúsculo? “Ainda não...” Ocaso! “Isso aí!”. Ele sorri, saboreando a palavra, “Ocaso...”

Cigano está satisfeito.

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