Construíndo uma estória (a estória da bolinha de gude).
A torre existiu. Ainda existe. A torre da 98 fm. A torre de rádio que fica no alto do aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, MG.
Quando éramos crianças e nossa vida era fantasiar pelas ruas Padre Rolim, Romano Stochiero, Padre Marinho, avenida Francisco Sales, a torre e as casinhas da favela nos morros da Serra eram a paisagem, o fundo entrevisto entre os edifícios mais ou menos luxuosos da zona sul.
No natal, quando nos reuníamos ao redor de dona Hebe - oguirê, abença! - a torre enorme ficava enfeitada de mil lâmpadas amarelas. Com o passar de alguns natais, as lâmpadas da torre começaram a piscar ritmadamente, e chegaram mesmo a executar alguns desenhos inventivos. Virgílio, o cientista entre nós, chegou a fazer um programinha de computador que desenhava (na tela de um 386) a torre e suas combinações de pisca-pisca. Ficou famosa, a torre, na década de 90, passou na Globo. Acendia todo dia 12 de dezembro, aniversário da cidade, e piscava até o dia de reis. Chegado o século XXI, aquilo ficou obsoleto, como tudo fica, e simplesmente acabou.
Em 1989, meu pai, sempre ébrio, atento ao nosso fascínio, um dia decreta: vamos conhecer a torre. Vamos subir o morro, visitar a Lúcia (empregada de vó Hebe à época), tomar um sorvete e chegar nos pés da torre. Para nós, seria a mais incrível aventura. E no outro dia, fomos.
Subimos os becos e as escadarias da favela, o Morro do Cafezal, Aglomerado da Serra, como pequenos faunos em cortejo seguindo Dioniso, meu pai. Foi mesmo uma aventura, e teve até o prometido sorvete. Um menino da vila encarou-me, fincou uma faquinha no chão de terra. Apaixonei-me por uma menina que vi de relance. Ouvimos um moço sentado num caixote tocando cavaquinho. A torre, que na época transmitia a 98 fm, rádio de rock e pop, era pintada de branco e vermelho, e era, para mim, com nove anos de idade, tão enorme que fazia curva no céu e parecia que ia cair em cima de nós.
Debaixo dela, bem no centro, havia um pequeno canteiro, onde deveria estar plantado um arbusto florido, mas a terra era seca e ruim e vazia de verde. Ali, eu, Letícia e Virgílio nos demos as mãos, mãos mágicas de criança (meu pai tomava umazinha no boteco próximo), e solenemente enterramos uma bolinha de gude que eu trazia no bolso, jurando alguma coisa seríssima de que me esqueci.
Até aqui, uma sincera tentativa de descrição de reais e corriqueiros fatos da minha vida.
Meu pai gosta de uma banda americana chamada The Grateful Dead, cujas capas dos elepês me chamavam a atenção, quando eu era menino, pelas imagens de caveiras e cartas de baralho. O nome da banda, em português, “O Morto Agradecido”, me sugeriu esta trama:
Em 1999, eu, já quase um marmanjo, caminho pelas ruas escuras e agora perigosas do bairro Sion, o mesmo morro do Cafezal ao fundo. É madrugada. Ouço passos. Três noiados me perseguem. Aperto o passo, mas sei que estou longe de casa. Numa curva, fico encurralado entre os malucos e um portão de garagem. O do meio tem uma faca. Instintivamente, olho para as janelas dos prédios em volta, não há luzes.
Quando meu olhar retorna para meus perseguidores, um menino, que veio não sei de onde, um menininho pardo, esfarrapado, havia se interposto entre eu e os moleques. Estava de costas para mim, os punhos cerrados, de frente para os olhares atônitos dos caras. Eles deram dois passos para trás e de repente, fugiram, zunando.
Escutando apenas minha respiração, esquecido do frio, fiquei imóvel por um instante, sem saber se queria ou se temia que aquele mesmo menino esfarrapado virasse o rosto, e eu visse o que viram os assaltantes que fugiram. Meu arfar fazia fumaça no ar. O menino não se virou, apenas abriu a mão direita. Ouvi um ruído vítreo de algo batendo no chão, e então o menino saiu correndo, sem se virar e sem fazer mais nenhum ruído. Não vi o seu rosto.
Procurei o objeto que o menino tinha deixado cair. Era aquela bolinha de gude.
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A Torre. Foto da internet.