Dizem que meu avô dr. Manoel Lobato fez um pacto com o demônio. Ficou rico, mas depois perdeu quase tudo. Chegou a ser dono de muitas farmácias, e frota de caminhões, em Minas e no Espírito Santo.
Eu tinha de três para quatro anos quando meu pai nos colocou, a minha mãe e eu, para fora de casa. Fomos morar nos avós, a casa grande do bairro Sagrada Família. Casa com quintal, jabuticabas, ameixas, mexericas e pés-de-cana. Por uma escadaria íngreme descia-se para um porão, onde havia as dependências da criada, a lavanderia, e um quartinho de tralhas.
Nesse tempo eu ganhei de aniversário o disco dos “Saltimbancos”, do Chico Buarque. As músicas “Na Pousada do Bom Barão” e “Esconde Esconde” me impressionaram muito, sentia medo daquelas vozes sussurradas ("Proibida e entrada!") e daquelas cordas e metais hitchcokianos.
Um dia, desci aquelas escadas e fui fuçar as tralhas do porão. No fundo daquele quartinho tinha outra porta, que ficava sempre trancada. Naquele dia, estava entreaberta. Vacilante, com minhas mãos fofinhas de criança, empurrei a porta e entrei. Era um cômodo sem janelas, com paredes e teto pintados de preto. O chão de ardósia tinha marcas do que pareciam ser os quatro pés de uma mesa que estivera ali por muitos anos e já não estava mais. Apenas, na parede oposta à porta, um desenho de giz branco: um triângulo equilátero, com um olho no centro.
Coisa de criança: mirando fixamente aquele olho, ele pareceu piscar para mim. Saí correndo.
Tive um sonho, alguns dias depois: Descia aquelas escadas, ao som de uma versão ainda mais psicodélica do “Esconde esconde”, e rumava para o quartinho secreto. Entrando ali, via as paredes e o teto negro cobertos de desenhos, crânios e tíbias, símbolos e letras cabalísticas. No centro do quarto, sobre a mesa de madeira de acácia, repousava um caixão. Uma única vela queimava sobre um magro pedestal. Ao fundo, bem debaixo do triângulo (que brilhava sinistramente), sentado numa cadeira estilosa, meu avô, vestindo roupas estranhas, um avental cheio de broches, anéis nos dedos, e um chapéu ainda mais estranho. Tudo era solene e demoníaco, exceto pela cara de meu avô, que cochilava, um fio de baba a escorrer-lhe pelo canto da boca murcha.
Somente anos mais tarde, fui perguntar a meu avô sobre aquele misterioso cômodo. Não lhe contei o sonho, somente a visita diurna, ao quarto vazio. Meu avô sorriu, e buscou entre antigos documentos sua carteirinha de mestre maçom. Curioso, perguntei-lhe o que se passava nas lojas. Ele respondeu que fizera um juramento de nunca o revelar. Mas contou-me das preliminares da iniciação, quando o neófito passa um tempo de provas num quarto escuro, as paredes negras cobertas de símbolos e dizeres estranhos, na companhia apenas de um caixão vazio. “chama-se a sala de reflexões”, completou meu avô. E arrematou: “No Grande Oriente do meu tempo, eram um bando de senhores ricos, na maioria de origem sírio-libanesa ou judeus, e até mesmo alguns pastores presbiterianos, todos meio crentes em mistérios espirituais. Eu, pelo meu bom latim, fui orador em diversas lojas. Mas, como você sabe, meu neto, sou um cínico - cínico no sentido filosófico. Agnóstico, aceito o mistério, uivo para a lua como um lobo, mas não creio em nada do que os crentes creem. A maçonaria me ajudou muito, admito. Porém, até onde posso ver, por trás do véu, não há nada.”