TRAMAS
CAMINHOS DE MACAÚBAS
Fomos a Jaboticatubas, eu acompanhando o Cigano, visitar uns artesãos. Pelo caminho, gratos passeios:
Pinhões, terra de negros feiticeiros, de fortes congados e culinária inigualável, onde certa vez ouvi frei Chico cantar, no meio de uma missa, um ponto de preto velho.
O Engenho, em Taquaraçu de Minas, de pinga boa e tira-gosto, queijo, linguiça, onde Cigano anuncia que toco violão e o dono do bar me traz um sete cordas, e tenho que desembolar um choro, socorro.
O convento de Macaúbas, de que Cigano coleciona os casos: O fundador, Félix da Costa, peregrino inspirado, viera de canoa subindo o Chico, desde Pernambuco. Dizem que aqui, em 1711, teve uma visão de um homem de manto branco, rosário na mão. Eis o mítico nascimento do convento, que teve o patrocínio ilustre de Chica da Silva, que tinha doze escravas que cobriam de rosas as pedras que a Chica iria pisar. E os padres e madres famosos. Um deles montou, em mil oitocentos e pouco, em Taquaraçu de Baixo, um grupo de teatro que está ativo até hoje. Um membro fundador, cego genial (há muitos na história universal), construiu um teatro no curral, um dos únicos existentes no mundo (o outro fica na Holanda, pesquisou-se).
Cachoeiras, Serra Morena, Jabó... Realmente, Minas prende a gente. Minas é uma fórmula elegante.
TERRAS
“Ô vontade de viajar”, Cigano comenta. “Pena que não estou podendo, com essa frauda no bilau, tomando remédios fortes. Fiz uma cirurgia. Não posso dirigir. Você não tem carteira?” Não. “Até hoje não tem? Tem que ter!”
Cigano me conta casos atravessados de um pedófilo luziense que mantinha apartamento em Guarapari. Convidou Cigano, uma vez, para passar umas férias, Cigano não quis ir.
Outra hora ele diz, “saudade das moças de estrada, das mocinhas de Araçuaí...”
ESCANDALOSAS
Foi uma fazendeira, dona Luciana Teixeira (a história registra), quem deu abrigo a umas putas fugidas de mais ao sul. As abrigadas putas atraíram os canoeiros, que então fundaram o arraial de Araçuaí. Ficou famosa a Maria Cheirosa, puta mor dali.
Cigano: “Cada cidade de Minas tem sua escandalosa mulher” E vem ele com as listas, os esquemas que ele tanto aprecia: “Araxá?” Cigano espera que eu responda, mas ele mesmo se antecipa: “Dona Beja. Diamantina? Chica da Silva. Pompéu? Dona Joaquina, a Sinhá Brava”. Desta eu não me lembrava. “Beagá? Hilda Furacão, do Hotel Maravilhoso, na rua Guaicurus”.
GOIÁS
"Tenho uma terra lá em Goiás, na beira de uma lagoa, preciso ir ver como está, quase dez anos que não volto lá. O monte que restou do meu sítio alagado pode guardar ainda ouro enterrado. Os habitantes locais relatam visões de Mãe do Ouro, luz misteriosa.
Dizem de uma moça, que teria sido abduzida, e contou de um homem alto e magro que teria feito experiências com ela, homem cuja pele era transparente e via-se o coração, uma enorme esmeralda. O sangue corria verde nas veias. Por esse tempo, um inglês morava por ali, sozinho, num casebre no mato, seria minerador. Era alto e magro. Bastou para que aparecesse morto, na beira do rio, com o peito furado. Ninguém achou o coração.
Sobre esse monte bate muito sol, o ouro das entranhas da terra fermenta e sobe, aflora. É o que dizem, ainda vou até lá conferir."
ESTRADA, MONTANHA
Cigano me tenta a tirar carteira de motorista, pegar estrada com ele, visitar Goiás. Fala de Alto Paraíso, da Chapada dos Veadeiros, das muitas possibilidades para um homem como eu, "místico". "Os etês de lá esperam por você". De fato, desde pequeno, sonho com estrelas caindo, pessoas predestinadas se reunindo no alto de uma montanha, esperando a vinda "deles". Como no filme Contatos Imediatos do 3º Grau. Arte marca. Vivo enormes nostalgias.
Cigano propõe praias baianas, amores índios. Justo agora, que estou me casando, e assumindo um cargo de professor no Estado, pensando em ter um filho. Só metade de mim é Cigana. "Azar o seu", conclui Altamirando.
AULAS DE TIRO
Por trás do mito da estrada, há o desejo de ir embora. Cigano está triste com Santa Luzia. Ainda assim, meio que para puxar assunto, enredar-me, Cigano me convoca a ajudá-lo a contratar uma internet para nosso Espaço Holístico.
Depois de instalada, testando a net no seu notebook, Cigano me mostra o canal de palestras do Pachecão, no youtube. Depois pede ajuda para pesquisar uma boa escola de tiro. Terá revólver? Se interessa por uma escola, de cultura judaica, armas e a estrela de Davi. Credo.
Pesquisamos também a tal represa em Goiás, na Serra da Mesa, o lago com maior volume de água da América do Sul, onde Cigano tem seu sítio. No google maps está lá, existe.
CHURRASCO DE SALMÃO
Em um dos nossos últimos encontros, lá vamos pelo baixo centro, em BH, comer salmão na brasa. Estou sensível. Fumamos uma diamba, minha mente fica instável.
Uma senhora negra, magrinha, muito idosa, de toquinha de crochê branca, fumava um cigarro, sentada no meio fio, em frente a um restaurante de prato feito. Hoje tem feijoada. Como pode uma velhinha como aquela, tão anciã e magrinha e calma, sentar em um lugar tão sujo, fumar esse cigarro tão sujo?
As zonas evoluíram muito, Cigano observa. Há seguranças de uniforme, detectores de metais. Uma puta fuma, recostada no chapisco. Não é bela.
A PM dá uma dura em adolescentes pobres. Quantos anos? Dezessete. Revistam as mochilas. Quase não vejo a policia pegando alguém do seu tamanho.
Na praça Sete de Setembro, Cigano entrega dois sacos de miçangas para um hippie que esticou uma rede bem ali, em frente ao banco, no prédio do Caduceu. Cinquenta vezes me perguntam se quero tirar retrato. Duas senhoras de saias longas distribuem a revista das Testemunhas de Jeová. O hippie fuma um baseado, em pleno dia, no meio dos transeuntes, numa rede esticada na praça Sete. O hippie é uma árvore na densa floresta.
Me lembro de um aluno meu, do turno noturno, que pouco antes de soar o sinal do recreio, já estava com o beque na mão. Eu disse, "rapaz, isso aí ainda é proibido". Ele respondeu, "que nada, fessor, proibido só pra quem não fuma".
Muito saboroso, o salmão grelhado. Por alguns instantes, penso em roubar todo o dinheiro do Cigano, e sumir. Ele confiou em mim, me mostrou suas contas, me levou ao banco com ele. Toda a carência do mundo passa por mim, por um longo segundo. Vou lavar o rosto.
REPETIÇÃO
“Mais de 60 por cento dos artistas da globo são gays. Mais de 30 por cento, dependentes químicos. Todos sofrem de depressão. O mal do século. Veja Ana Paula Arósio: não aguentou. Você precisa ler o Pachecão.”
E segue Cigano, se repetindo: Falar mau do Faustão. Do “Esquenta” da Regina Casé. “Baixaria, coisa de preto”. Defender a pena de morte pra ladrão. Elogiar o Sílvio Santos. Criticar o Lula. Vou bolando mil teses sociológicas.
NATAL
Cigano me encontra na rua. “E aí, meu amigo?” Apertamos as mãos. “Anda sumido, professor!” Comento que ele emagreceu, está esbelto. Deixou o cabelo crescer, tem belas madeixas quase chegando nos ombros. Ele diz que tem feito caminhadas e dança de salão, colocou dentes novos, "olha só.” Abre um sorriso. “Fiz 65, agora não pago mais ônibus, sou preferencial. E você, professor, trabalhando muito?” Eu vinha chegando de oito horas de oficinas, dadas para os meninos do aglomerado do Zilá Spósito. Realidades que sugam nossas forças. Digo que, um pouco graças a ele, Cigano, estou a tornar-me contador de histórias, profissional.
Cigano aponta minha barba, que neste dia estava grande e já é algo grisalha. Comenta, “você bem que podia ser Papai Noel. Por que não tenta? Eles pagam oito mil o período, para quem tem uma barba legítima, assim cheia, como a sua. Oito mil! Faz-se apenas um cursinho preparatório de uma tarde para ficar lá – ho ho ho! E você, estudou quatro anos para ser professor estadual..."
"Pobre sofre muito.”