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Dona Olímpias

Pedro Lobato Moura

Fato.

Meu tio Paulo geria um telegás no bairro Asteca, na periferia de Santa Luzia. Um dia, ele foi, de honda, entregar um botijão, em um beco de uma vila próxima. Recebeu-o uma senhora bem velhinha, negra dos cabelos de algodão, simples e muito afável. Deixando o botijão numa pequena garagem colada ao barracão, meu tio nota, sobre algumas prateleiras, garrafões de vidro. Dentro de cada um deles, uma cobra, imóvel.

Curioso, meu tio pergunta sobre a sinuosa coleção.

“Isto, meu filho”, explica a senhora, “é porque sou benzedeira, sabe? Eu benzo. Desde menina, herdei de mãe. Mãe cultuava os espíritos velhos africanos, eu sou católica apostólica e congadeira. E benzo, desde pequena, e encanto cobra. Rezo e elas ficam ali, catatônicas, nas trilhas. Às vezes eu cato, engarrafo e dou, pra tudo quanto é gente, pai de santo, doutor da Universidade Federal, esposa traída. Com dois dias, se não dou, devolvo pro mato. É uma reza forte”.

Meu tio me contou isso porque soube que vim morar em Santa Luzia. Meu tio é um cara cético, ateu, que escuta jazz e lê Osho. Por isso, acreditei firmemente no caso. E fui pesquisar. Me saí com uma estória, que conto para meus jovens alunos.

Estória da dona Olímpia.

i.

Morava no bairro Asteca, em Santa Luzia, uma senhora chamada dona Olímpia. Ela era negra, baixinha e de cintura larga. Seu cabelinho grisalho era curto e estava sempre debaixo de um lenço. Ela era uma benzedeira de boa fama. Muito devota do Divino e do Rosário. Só tinha uma peculiaridade, que lhe dava uma aura a mais de mistério: criava cobras, encantadas, em garrafões. Falava-se pouco nisso, exceto as crianças, que a temiam, fascinadas.

Muito pobrinha, levara a vida a lavar, passar, costurar para fora. Agora, sobrevivia de um mirrado INSS, e ainda sustentava um filho malandrão, já quarentão, sujeito de biscate, baralho e bar da esquina. Além desse filho, dona Olímpia tivera, com o finado marido (homem bom, trabalhador, infelizmente morreu cedo, de acidente), uma filha. Adolescente, a moça envolveu-se com um traficante e foi morar em outro morro. Um dia, ela apareceu na casa da mãe, com um bebezinho no colo, para a mãe abençoar: “É o Alex, mãe. Cuida dele pra mim um pouquinho, vou ali e já volto”. Nunca voltou.

Dona Olímpia apegou-se muito a esse neto-filho. Alex cresceu chamando dona Olímpia de mãe, era o tesouro dela. Tornou-se um rapaz, aos quinze anos, ousado, entusiasmado com a vida, inteligente. Gostava de funk, futebol, videogame e outras coisas de jovens, mas preocupava-se com dona Olímpia. Era, a seu modo, um menino responsável, um menino trabalhador. Tinha uma moto, com que fazia seus bicos. Seus corres. Sonhava em proporcionar à mãe uma vida melhor. Isto, há uns dois anos atrás. E sobreveio o trágico.

ii.

Dois policiais faziam ronda na entrada do Asteca, um certo dia. Eram novos na área, não conheciam muito bem a população local, embora um deles morasse próximo dali, no bairro São Benedito, do outro lado da avenida Brasília. A distância maior era social. Neste dia, os dois policiais recebem pelo rádio um alerta de assalto: um jovem, pardo, magro, de bermuda, boné, correntinha de prata, teria roubado uma moto na avenida Brasília. “Elemento evadindo em direção ao bairro Asteca. Favor efetuar abordagem”. Os dois se posicionaram, na entrada para os becos onde moravam, entre muitas famílias pobres, dona Olímpia e os seus.

Um dos policiais vivia uma péssima semana - mãe doente, filha adolescente, esposa descontente. Sofria dos nervos - noites e noites dormindo mal. E eis que vinha Alex em sua moto, vindo de uma correria em Beagá. Será que um gato preto cruzou seu caminho? Houve sinais? Os policias o avistam. Enquanto um deles gesticula para Alex encostar a moto, o outro, aquele que não andava muito bem, saca a arma e aponta para o rapaz. Alex, com medo de perder sua moto, pois não trazia documentos nem possuía carteira de habilitação, tenta escapar (ou “empreender fuga”, como gostam de dizer os polícias, ou “evadir-se do local”). O policial atira (ou “efetua três disparos”). Sapeca três tiros, como se diz na quebrada. Senta o dedo. Alex cai da moto, morto.

A comoção e o B.O. atraem uma pequena multidão, e logo dona Olímpia também chega à cena do crime. Diante de seu filho amado, morto sobre o asfalto, dona Olímpia sai de si: surta, como se diz, chora, grita, se descabela, rasga a roupa, esmurra o mundo, o ar, a terra. Seu lenço ficou no chão. Ela não tinha palavras, só urros. Amparam-na os vizinhos, o filho mais velho, levam dona Olímpia para casa, dão água com açúcar pra ela. E ouvem o que nunca ninguém esperava ouvir da santa boca daquela senhorinha: blasfêmias, pragas, imprecações. Dona Olímpia duvidava de Deus. Como Deus podia fazer aquilo com ela? Os vizinhos faziam o em-nome-do-Pai. “Que me valha Exu!”, gritou ela. O povo foi se pondo porta afora. O filho saiu para cuidar das burocracias da morte.

À meia noite, Olímpia, só, levanta-se e vai até o fundo do seu terreiro, no meio das bananeiras. Ali sua mãe louvava, nos tempos antigos, os espíritos antepassados, África. “Me vinga, Bessém!” Ventava: ou seriam chocalhos? Dona Olímpia gritava. Depois, dormiu.

No outro dia, bem de manhãzinha, dona Olímpia acordou. Estava sentada no sofá da sala. As costas doíam muito. Com dificuldade, ela se levantou, percorreu com os olhos a salinha humilde do seu barraco, deu com a enorme bíblia, que ficava em cima da mesa. Estava aberta na passagem em que Jesus diz, “é fácil amar a quem nos faz o bem; mas eu quero que amem seus inimigos”. Foi como se Jesus estivesse ali, falando diretamente com ela. O calor de um choro irrompeu, dona Olímpia caiu de joelhos, pediu perdão a Deus por deixar-se dominar pelo ódio. Naquele dia, ela enterraria seu filho amado, rezaria rosários e faria novenas, pedindo perdão a Deus, e que Deus tivesse misericórdia da alma daquele policial que matou seu filho (quem quer que fosse ele; ela não se lembrava mais do seu rosto). Não lhe queria mal. Eles não sabem o que fazem.

iii.

Quanto ao policial, ficou afastado por quatro meses, fez terapia. Depois, voltou a trabalhar.

Passou um ano. Eis que, princípios de Abril, o policial começa a sentir uma dor nas costas, sem motivo aparente. Vai piorando com os dias, ele vai ao médico. Faz exames, tira chapa. Nada. “É psicológico”. O policial não lida bem com este laudo. Toma tylenol e continua a trabalhar. Só piora. Sua filha, um dia, preocupada, diz, “Pai, conheço uma senhora que mora em um lugar aqui perto, no Asteca, que benze. Ela é muito bem falada. Dizem que cura tudo quanto é dor que ninguém explica. Não cobra nada, é uma benzedeira mesmo, de caridade. Por que o senhor não vai lá? Eu marco pro senhor”. O policial, ainda que cético, aceita, para agradar a filha, e vai que... Nem fazia ideia de que iria visitar a dona Olímpia, mãe do rapaz que ele executou, há um ano atrás, meio sem querer, cujo olhar ainda o atormentava em certas noites mal dormidas.

Algo como uma coceira, no fundo dos pensamentos, talvez ele tenha experimentado, ao entrar por aqueles mesmos becos. Perguntou pela casa da benzedeira, "a que cria cobras?", indicaram-lhe o caminho, um beco estreito entre dois barracos, que dava para um quintal de terra batida, grama aqui e ali, galinhas ciscando, bananeiras no fundo. Ele viu, posicionados como se estivessem a esperá-lo, uma cadeira vazia, e de pé, atrás da cadeira, uma mulher. A mulher não era o que se esperaria de uma benzedeira: era atraente, por volta dos quarenta, uma negra bem feita, o vestido acompanhando as curvas do corpo, os cabelos cacheados, cheios, bem cuidados, um colar de corais. Ela convidou o policial a sentar-se. Começou massageando-lhe as costas, perguntando sobre as dores, dizendo que tudo ia ficar bem. O homem sentia seu perfume, alfazema e mulher, delicioso. Seu toque inebriava, sentia-se entorpecido, as pernas ficando moles. A mulher passou das costas para a frente, massageava seu rosto, o colo dela bem ali. E essa música de flautas e tambores, estaria em sua cabeça ou de fato tocava em algum lugar? Ele estava confuso. A mulher parecia agora executar passes de mágica, diante dele, uma dança oriental. De repente, de seus cabelos cacheados que ondulavam, uma cobra saltou. Saltou, e mordeu o homem, bem entre as pernas. A dor o despertou da letargia: não via mais diante de si uma mulher atraente, mas sim uma velha, e do meio dos cabelos desgrenhados dela, mais cobras brotavam e picavam nosso pobre policial, incapaz de reagir.

No outro dia, a manchete no SUPER seria assim: Policial é encontrado morto em quintal de benzedeira. A cena descrita: o homem, branco, aproximadamente quarenta anos, vestido a paisana, jazia no chão, a pele esverdeada. Havia sinais de picadas por todo o seu corpo: picadas de cobra. Uma senhora estava sentada num toco, em estado de choque. Não se lembrava de nada desde a manhã. Tudo indica que o homem teria ido até o local para se benzer. Constatou-se que havia garrafões de vidro na residência, acondicionados em prateleiras numa garagem próxima, e dentro dos garrafões, cobras vivas, que a dona do lugar, a dita benzedeira, tinha fama de colecionar. Uma das prateleiras havia se soltado da parede, derrubando e quebrando alguns dos garrafões. As cobras haviam escapado. Seriam estas as que teriam picado, fatalmente, a vítima.

Considerou-se o havido um pitoresco acidente. Consideraram multar a senhora, por manter animais silvestres em cativeiro. Mas, pobre senhora.

Dizem que mudou-se, e não benzeu mais.

Pós-escrito: Fatos.

i.

“Quatro cabeça – moleque de boné e tudo”.

PM Márcio José Watterlor

Esta epígrafe foi a frase do PM, dita como justificativa para a saraivada de tiros que ele iria dar no carro de uma jovem que voltava da faculdade com mais três amigos. Os policiais confundiram-nos com bandidos. Um deles até mesmo usava boné! A jovem morreu.

O caso permaneceu sem investigação até a revista Veja divulgar, em 2015, gravações feitas de dentro da viatura. O caso foi amplamente noticiado.

Links para a notícia:

Na mesma semana da notícia, fui dar uma aula de literatura em uma escola da periferia de Belo Horizonte. Como os meninos eram tora, fechei a porta e começamos um papo reto. Contava-lhes casos de terror - a história do menino do tênis vermelho, em que o diabo põe macumba no tênis e o menino termina tendo que amputar os pés. Ia tudo bem, na minha aula. De repente, entra a diretora da escola, para fiscalizar. Avista um menino de boné. Boné não pode.

A coisa - que ia tão bem, todo mundo prestando atenção na minha história - acabou descambando em agressão. O menino resistiu, não queria tirar o boné. Fiquei triste, solidário à pobre educadora, mas também, muito mais, solidário a todos os bonés e aos jovens abrigados debaixo dos bonés. Sei tudo que eles sofrem cotidianamente.

Foi também pensando nas mães dos meninos de boné, que escrevi este conto.

ii.

Quando tio Paulo me relatou esta curiosidade, da benzedeira encantadeira de cobras do Asteca - na cozinha de vó, nós dois tomando café – estava eu fazendo um curso sobre Alexandre, o Grande. O professor Rogers (Guy MacLean Rogers, da Wellesley, E.U.A. – era um curso a distância) havia acabado de mencionar a rainha Olímpia da Macedônia, mãe de Alexandre.

Plutarco nos conta que “as mulheres destas terras da Macedônia eram habituadas aos

ritos órficos e às orgias de Dionísio, desde tempos muito antigos, sendo conhecidas pelos nomes de Clodonesas e Mimalonesas. Elas tinham práticas semelhantes, em muitos pontos, às das mulheres Trácias que viviam no monte Haemus. É desta região que surgiu o termo threskeuein, que veio a ser aplicado à celebração de cerimônias supersticiosas e extravagantes”.

"Olímpia", continua Plutarco, "era zelosa e afetada em suas divinas possessões, e vivia suas inspirações (transportes báquicos) de maneira intensa, selvagem. Ela provia seus tirsos, companhias de dançantes iniciados, de enormes serpentes, dóceis, que por vezes levantavam suas cabeças entre os arranjos de heras ou surgiam de dentro dos balaios misteriosos, enroscavam-se nos bastões sagrados e nas guirlandas das mulheres, enchendo de terror e admiração os homens que assistiam às celebrações”.

Assim nos conta o excelente escritor grego, no livro 3 de sua “Vida de Alexandre”.

Nas palavras do professor Rogers:

Plutarch tells us that Alexander's parents met and fell in love while they were being initiated into the mysteries of the Cabeiri on Samothrace. The Cabeiri were some kind of earth gods, possibly thought of as the sons of Hephaestus. The mysteries were secret ceremonies of initiation that somehow put the initiates into closer contact with the divine. Plutarch also mentions that Olympias, in particular, was devoted to the wine god, Dionysus, and used to take enthusiastic part in his ceremonies. Particularly during the processions of Dionysus, she used to have tame snakes somehow in baskets that were being carried in the processions, which she released and thereby terrified the male spectators.

Sobre o tema, compus um poema:

Dona Olímpia, a mãe do divino Alexandre,

tinha bodes, muitos.

Em tempos, era um sacrificado para Baco - Iô!

e dos seus bagos faziam-se fármacos,

de seus chifres, rítons, de sua pele, pandeiros,

que dona Olímpia e suas bacantes, em transe,

tocavam nas procissões.

Sátiros de falos hirtos vinham sambando atrás.

Monsueto Menezes fez um samba sobre isso,

“Couro do Falecido”:

Um minuto de silêncio, para um cabrito que morreu:

Se hoje a gente samba, é que o couro ele nos deu.

Monsueto era devoto da coisa, de sabedoria báquica.

A benzedeira de Santa Luzia, no fundo, parece que também.

Notas.

Benzeção

Escrevem-se as rezas, dá-se a lista das folhas, explicam-se as afecções.

Nada disso garante, porém, que a benzeção passará adiante. Porque é um dom, dom do céu. As rezas, as folhas, o saber – nada disso funciona, senão como desculpa para algo divino intervir.

Precisa-se saber a reza. Mas precisa-se, ao rezar, sentir aquele sono, aquela tristezinha de Deus. Para curar estas afecções, que segundo cientistas, nunca existiram: olho gordo, espinhela caída, medo de pisar o pé depois de quebrar.

O meu primeiro caso de benzedeira foi esse: aos dez anos quebrei o pé, não consigo mais me lembrar se o direito ou o esquerdo. Fiquei de gesso, do peito do pé até o joelho, por dois meses e meio. Depois que tiramos, sofri de uma frescura de pisar com aquele pé, que foi persistindo... Até que minha mãe me levou a uma benzedeira.

Faz pouco tempo que saímos da posição de Machado de Assis (vide crônica de 29 de agosto de 1889) sobre o "curandeirismo". Hoje falamos em patrimônio imaterial, falamos no intangível, respeitamos constitucionalmente o direito ao contato com o intangível. Hoje, assim como biólogos protegem a diversidade das espécies, acreditamos na importância da preservação de uma diversidade cultural. Mas é recente.

Tragédias

Diz Plutarco que, quando da morte do rei Filipe da Macedônia, assumindo Alexandre o poder, Olímpia, sua mãe, sempre rainha, voltou sua ira contra a mais nova esposa de Filipe (que teria quatro esposas ao todo, contando com a rainha). Era uma moça chamada Cleo (virtude), que dera à luz há poucos meses um bebê de Filipe. O rei morto, a rainha teria forçado a garota Cleo ao suicídio, não sem antes sacrificar seu bebê em sua presença.

Olímpia, rainha grega. Olímpia, contadora de histórias das ruas de Ouro Preto. Olímpia, humilde benzedeira.

Mistérios e serpentes são mais longevos do que supomos?

O governo na mão das mineiras máfias (da favela do Asteca se vê a Cidade Administrativa), armas de fogo nas mãos de garotos noiados: eis nossos verdadeiros problemas agora.

Bruxas são boa gente, e suas práticas, patrimônio cultural.

Há quem diga que Olímpia foi um dos sete demônios expulsos da serva que lavou os pés do Cristo com os próprios cabelos, estando, hoje, perdoada.

Pode crê!

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