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Livro do Cigano, notas

Pedro Lobato Moura

NOTAS

NOTA SOBRE O EMBRULHO

“Minha mãe nasceu no começo do século: 1904. Ela repete sempre que vai morrer lúcida. Mora em Belo Horizonte. Ela diz: Nunca pensei que morrer fosse tão difícil.

Não conheci meu pai. Dele não senti falta, senão à medida que ia tomando consciência de minha existência. Eu tinha menos de sete anos quando ele morreu. Ele comprou uma farmácia do pai dele, meu avô Arthur Lobato. Minha mãe tornou-se prática de farmácia. Exerceu a profissão em Açaraí.

Fiz os vestibulares de Farmácia e de Direito no Rio. Passei em ambos, mas acho que optei por Farmácia para ajudar minha mãe, porque já lhe haviam fechado a farmácia quando um diplomado, Dionísio Costa, se mudou de Mutum para Açaraí.

Quando me formei em farmácia (fui o orador da turma), voltei para Açaraí e propus uma sociedade com minha mãe. Ela me disse que eu era doido. Foi então que me lembrei que, dias antes, havia parado um fazendeiro a cavalo defronte da Farmácia Popular, de minha mãe. E ele, dirigindo o olhar para o meu lado, perguntou à minha mãe:

- Este aí é que é seu filho obsedado?

- É farmacêutico.

- A senhora, que está aqui este tempo todo, fala que ainda não tem diploma, como é que um menino destes pode ser farmacêutico formado? Ele chegou pra aqui ontem, e ainda por cima é leviano das ideias... Ele é prático algum?

- Ainda não.

Minha mãe não me deixava praticar em sua farmácia. Convidei-a para uma sociedade: Mamãe, a senhora tem a prática; eu, a teoria. A senhora tem o estoque; eu não tenho capital. Tenho a mocidade, a senhora já trabalhou muito neste fim-de-mundo. Vamos para uma cidade grande.

Foi aí que minha mãe apagou meu fogo: Você é doido, meu filho. Não sabe sequer fazer um embrulho dum vidro de xarope. O vento que apaga a vela é o mesmo que atiça um incêndio, já dizia o professor José Augusto Carvalho, repetindo uma tirada francesa, acho. Posso morrer afogado numa piscina de navio, mas hei de enfrentar a água do oceano. Peguei uma pequena caixa vazia, embrulhei-a com capricho em papel manilha, amarrei-a com barbante, dei um laço legal, lindo, longo, um luxo. E mostrei a embalagem à mamãe:

- Aqui está a prova.

- Não falei que você é doido?”

MANOEL LOBATO. Cartas na mesa. p. 39

NOTA SOBRE O SONO DO RIO

“O rio está dormindo. Quem sabe logo percebe. É uma folha que cai, um ramo de graveto que pousa, não sai do lugar. Nessa hora, a água não serve para ser bebida. Enquanto dorme, dormem os remansos, cachoeiras, corredeiras, olhos-d'água, em sono leve, pequeno. Tudo para. Quem acorda o rio fica louco. Este é o castigo.”

TAVINHO MOURA. Maria do Matué. p. 51.

NOTA SOBRE O DIABO NO GRANDE SERTÃO

DIABO – Em GS são empregados 73 cognomes de Diabo, dentre os quais 41 – variantes e invenções – não se encontram nos dicionários. O narrador do romance, o jagunço Riobaldo, à maneira adotada pelos crentes supersticiosos (cf. José Leite de Vasconcelos, in ob, cit., p. 369), para não proferir o nome do Diabo, usa os seguintes eufemismos religiosos: Aquele, Arrenegado, Austero, Azarape, Barbazu, Bode-Preto, Canhim, Canho, Cão, Capeta, Capiroto, Careca, Carocho, Carujo, Coisa-Ruim, Coxo, Cramulhão, Cujo, Danado, Dado, Danador, Das-Trevas, Dê, Dêbo, Demo, Demonio, Diá, Dião, Dos-Fins, Duba-Duba, Ele, Figura, Homem, Indivíduo, Lúcifer, Mafarro, Maligno, Manfarro, Mal-Encarado, Morcegão, Muito-Sério, O, Ocultador, Oculto, O-Que-Nunca-se-Ri, Outro, Pai-do-Mal, Pai-da-Mentira, Pé-de-Pato, Pé-Preto, Que-Diga, Que-não_Existe, Que-não-Fala, Que-não-Ri, Rapaz, Rei-Diabo, Satanão, Satanas, Sem-Gracejos, Sempre-Sério, Severo-Mor, Sôlto-Eu,Sujo, Temba, Tendeiro, Tentador, Tibes, Tinhoso, Tisnado, Tranjão, Tristonho, Tunes, Xu.

NEI LEANDRO DE CASTRO. Universo e vocabulário do Grande Sertão.

NOTA SOBRE MAÇONARIA

Saiu um artigo, no caderno literário do Estado de Minas, edição de 15 de julho de 2006, sobre o esoterismo na obra de Guimarães Rosa. Especulando sobre a incerta filiação do escritor à ordem maçônica, o artigo entrevista o escritor, jornalista e maçom Manoel Lobato:

“Lobato lembra que, ao conhecer Guimarães Rosa no início dos anos 60, trocou com ele palavras e sinais da ordem”.

BOA SOBRE O SEBO

Encontramos em um sebo um raríssimo volume das obras de Luciano de Samósata. Há um tomo com o nome “Dioniso”. Diante de meu entusiasmo, Cigano o compra.

Leio em voz alta, enquanto Cigano tece colares:

"No território dos Malabares, que ocupam a margem esquerda do Indo até o mar, existe um bosque, não muito grande, mas fechado, tanto ao redor quanto em cima, sendo a luz quase excluída, por uma profusão de heras e de vinhas. Neste bosque estão três nascentes de água transparente, chamadas, uma delas, a Fonte dos Sátiros, a segunda Fonte de Pan, e a outra, de Sileno. Os indianos entram neste bosque, uma vez por ano, no festival de Dioniso, e provam dos poços, não indiscriminadamente, mas de acordo com a idade: O poço dos Sátiros é para os jovens, o de Pan para a meia-idade, e o de Sileno para aqueles em meu tempo de vida.

Que efeito produz o beber sobre as crianças, o que é feito dos homens estimulados pela água de Pan, não deve nos deter; mas o comportamento dos velhos, sob a sua aquática intoxicação, tem o seu interesse.

Assim que um deles tenha bebido, e Sileno o tenha possuído, ele jaz mudo por um tempo como aqueles em letargia vínica; então, de repente, sua voz se faz forte, a sua articulação clara, a sua entonação, musical; dum silêncio de morte irrompe um fluxo de conversa, uma focinheira não poderia impedi-lo de conversar incessantemente, envolvendo-nos em contos e mais contos. No entanto, tudo é sentido e ordem, suas palavras são tantas, e encontram o seu lugar tão bem, como aqueles “flocos de neve de inverno” do orador de Homero. Você pode pensar em uma canção de cisne*, se você quiser, consciente dos avançados anos do cantor, mas é preciso acrescentar que o seu chilreio é rápido e animado como o do gafanhoto, até que a noite vem; então, o efeito passa, ele se cala, e é o seu comum “eu” de novo. Mas, a maior maravilha eu ainda estou para dizer: se ele deixar inacabado o conto que contava, se o por-do-sol interrompê-lo antes da hora, então, quando beber no ano que vem, ele irá retomá-lo bem no ponto em que a inspiração deste ano o abandonou."

* A expressão “canto do cisne” é uma referência a uma antiga crença de que o Cisne (Cygnus olor) é completamente mudo durante a sua vida, até o momento um pouco antes de morrer, quando ele canta uma bela canção.(N.E.)

NOTA SOBRE GOIÁS

"E como as pedras mais preciosas se encontram na zona tórrida, e o Brasil se situa quase no meio dela e próximo à linha equinocial, é de crer-se que receba influência do sol, gerador do ouro, que aí passa duas vezes pelo zênite. O que me leva a dar crédito ao que dizem os franceses e índios e outras testemunhas oculares, de por aí existirem muitas minas de ouro e pedras preciosas e muitos viveiros de pérolas. Ademais, achando-se o país no mesmo clima do Peru e em continuação terrestre deste, é provável que não haja no Peru riqueza alguma que se não encontre no Brasil, que se localiza apenas mais para o oriente, na mesma latitude de Cusco e nas vizinhanças do rio Amazonas, o maior e mais rico rio do mundo."

CLAUDE D'ABBEVILLE. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão, pp. 163.

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