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  • Pedro Lobato Moura

Herança: Anel

Herança: Anel

Canta o cego Homero sobre o herói Aquiles, diante da escolha: ir ou não ir à guerra de Troia?

Certa noite, Tétis, deusa mãe do jovem Aquiles, faz uma visita a seu mortal rebento. “Olha, filho meu”, teria dito a voz oceânida, “a escolha é entre uma vida longa, besta, feliz, ficando em casa, cuidando da família, cultivando a terra, ou uma vida curta, dolorosa, cheia de som e de fúria, prematuramente ceifada por uma lâmina afiada”.

A deusa mãe faz uma pausa, deixa o menino meditar.

Então, Aquiles pergunta, “mãe, o que diabos me faria escolher a segunda opção?”

“Ora, menino, a Glória Eterna! Pois ninguém se lembra dos homens felizes”.

“Vai chorar, vai sofrer, e você não merece, mas isso acontece”, canta o Cartola nas caixas de som. Kora canta, e chora. Kora tem certa facilidade para a tristeza, chora no fim do filme. Ela está pensando na vida. O conhaque ajuda, embala. Eu me aproximo. Sou seu filho. Depois de tanta tormenta, hoje navegamos em águas calmas. Ficamos a repassar velhos mitos da infância. Lembrando meu avô, um prestigiado escritor. Todos os seus sórdidos crimes estão registrados em sua literatura, em contos floreados de latim: as traições à mulher, com amantes e prostitutas, até seu best-seller pedófilo, o sadismo nos castigos aos filhos e especialmente à filha, as estripulias com os remédios na farmácia da família, alquimias que resultaram em algumas mortes mais ou menos propositais. Tudo vira literatura, e meu avô recebe a medalha da Inconfidência, das mãos do governador, em Ouro Preto.

Soam os ruídos do fim do disco. Kora Andrada se levanta, vagarosamente guarda o disco preto na capa. Não escolhe outro, ainda. Senta-se de novo, molha a garganta. “Olha, meu filho, vou te contar uma história”.

Foi como se ela tivesse me passado o anel, aquele anel nórdico, forjado no princípio dos tempos: tesouro e maldição.

É um conto, pronto.

“Quando seu avô foi me buscar em Barbacena”, minha mãe contou, “depois de me deixar nove meses lá, internada, sem nem me fazer uma visita sequer, eu tomando até choque elétrico, você sabe, era a ditadura, e eu era tudo: mulher, hippie, comunista, psicodélica... Seu avô me buscou, naquele dia, com poucas palavras, seco, e voltamos para Belo Horizonte. No dia seguinte, ele me levou ao cinema, para assistir no Cine Jacques um documentário sobre a Janis Joplin, que eu amava, e que tinha morrido há poucos meses. Depois do filme, na saída do cinema, seu avô vira pra mim, na maior frieza, e diz: Kora, por que não morreste? Daria-me um ótimo conto.”

O ponto é: nós estamos aqui, sobrevivemos, passamos por toda a repressão e abuso de nós mesmos e de substâncias e de paradigmas, e vingamos, feito as plantas do cerrado. E não nos tornamos a tragédia da literatura de ninguém, os pobres botocudos dizimados, não – nós fazemos nossas próprias letras. Minha mãe hoje é avó, e ela cuidou do meu avô e de minha avó, nos seus últimos anos, quando o velho Andrada nem sabia mais quem era, e apenas segurava as próprias bolas e dizia "vou-me já com meu precioso".

“Mas quem tem coragem de ouvir?”, toca a vitrola agora, “amanheceu o pensamento que vai mudar o mundo com seus moinhos de vento”. A gente ri, eu e minha mãe.

Nada muito atlético, de fato caladinho, esse tal perdão, hein? Não vale um conto, a tal felicidade.

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