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Ensaio sobre Pedra e Poesia

Pedro Lobato Moura

Ensaio sobre Pedra e Poesia

Trabalho de ciências: Recolher amostras variadas de rochas, catalogar, organizar num painel para exposição. Eu tinha dez anos, quarta série. Fui na pedreira do bairro, pedi umas amostras, pus num plastiquinho, colei num madeirite. Gostei muito.

Foi nesse então, que creio ter intuído um primeiro poema. É que estas palavras grudaram em minha mente: Quartzo, mica, feldspato. Eu ficava repetindo isso: Quartzo, mica, feldspato, quartzo, mica, feldspato – um poema concreto. A professora quem disse isso: É a composição do granito, rocha magmática. Eu lembro até hoje, esse poema nunca me deixou:

Quartzo, mica, feldspato.

Lembra Drummond com sua Pedra no Caminho. Este episódio me veio à memória por conta de umas reflexões sobre o hábito de colecionar, mas resolvi traçar um pequeno inventário, do que me ocorre sobre poesia e pedra, para futuros usos.

Meu nome é Pedro. Esse nome, que todos sabemos querer dizer pedra, foi invenção de Jesus, é como assim um codinome. Jesus encontra com Simão o pescador e seu irmão André. Convoca os dois para a missão, “pescar almas”, e no ato rebatiza Simão para Cefas, rocha em aramaico, Pedro. Depois Jesus fará trocadilhos com o apelido, como “sobre ti erguerei minha igreja”, ou o contraste do nome com a falta de firmeza do Primeiro Apóstolo.

A poética da pedra. Nosso orgulho nacional, poeta João Cabral de Melo Neto, aprofundou-se neste estudo e nos legou A Educação pela Pedra, um livro de poemas fundamental.

Eis o poema que dá título ao conjunto:

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.

* Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.

Em 1942, João Cabral publicou A Pedra do Sono, seu primeiro livro. Foi classificado de surrealista, e mais tarde criticado pelo próprio João Cabral, pelo uso de sujestões e atmosferas, que não mais agradavam o poeta, que queria imagens concretas e metáforas precisas.

Como isso:

O sertanejo falando

1.

A fala a nível do sertanejo engana: as palavras dele vêm, como rebuçadas (palavras confeito, pílula), na glace de uma entonação lisa, de adocicada.

Enquanto que sob ela, dura e endurece o caroço de pedra, a amêndoa pétrea, dessa árvore pedrenta (o sertanejo) incapaz de não se expressar em pedra.

2.

Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeitá-la na língua, rebuçá-las; pois toma tempo todo esse trabalho.

É uma pedra bem concreta, ainda que metáfora.

Arnaldo Antunes, no poema Lua Vermelha, fala da lua como “pedra que flutua”, bela imagem que junta pedra e leveza. Imagem que serve também para a terra. Imagem concreta.

O surrealista tende a derreter a pedra, imagem alucinógena.

Hilda Hilst, em sua ode dionisíaca Alcoólicas, derrete a pedra. Neste conjunto de poemas, é recorrente o refrão “a vida é líquida”. No entanto, nos primeiros versos do canto I, a vida é dura e crua, e “nela despenco: pedra mórula ferida”. Vem o álcool em socorro da poeta, e tudo se derrete. O poema conclui: “A vida é líquida.”

I.

É crua a vida. Alça de tripa e metal. Nela despenco: pedra mórula ferida. É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

Hilda Hilst. Alcoólicas.

Um desvio para os curiosos. A mórula, presente no verso de Hilda “pedra mórula ferida”, é um dos primeiros estágios da formação de um embrião, segundo a enciclopédia. O espermatozóide fertiliza o óvulo: forma-se o zigoto. Do zigoto passa-se à mórula, como na ilustração abaixo:

Retirado da wikipedia

Eis alguns retratos da mórula:

O termo vem do latim, diminutivo de amora.

Charles Baudelaire põe a beleza a comparar-se com um “sonho de pedra”, no poema chamado “A beleza”, em seu livro Flores do Mal.

Embora use, para falar de si no poema, a imagem da pedra, da estátua, do cristal, da esfinge - “meu seio, em que sempre o homem absorve a dor, / Feito é para inspirar aos poetas este amor / Mudo e eternal que na matéria medra” - a beleza de Baudelaire não transmite concretude ou dureza ou opacidade.

Esta pedra é mulher, é luz, é cristal, pedra água. Mesmo sem querer, a beleza de Baudelaire derrete.

La Beauté

Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre, Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour, Est fait pour inspirer au poète un amour Eternel et muet ainsi que la matière.

Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris; J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes; Je hais le mouvement qui déplace les lignes, Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.

Les poètes, devant mes grandes attitudes, Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments, Consumeront leurs jours en d'austères études;

Car j'ai, pour fasciner ces dociles amants, De purs miroirs qui font toutes choses plus belles: Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!

— Charles Baudelaire

A Beleza Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra, E meu seio, em que sempre o homem absorve a dor, Feito é para inspirar aos poetas este amor Mudo e eternal que na matéria medra. Eu impero no azul, esfinge singular; Sou coração de neve e branco cisne lento; Porque desloca a linha, odeia o movimento, E nem sei o que é rir, nem sei o que é chorar. Sempre o poeta porém a esta grande atitude Que eu pareço copiar de uma estátua distante, Fôrça é que, dia a dia, austero o ser, me estude; Tenho para encantar este dócil amante, Pondo beleza em tudo, os mais puros cristais: Meu olhar, largo olhar de clarões eternais.

Charles Baudelaire. As flores do mal.

Ariano Suassuna compôs o Romance da Pedra do Reino. Aí, a Pedra é portal, marco geográfico, feito Stonehenge ou os menires, é passagem para outra dimensão. Dom Sebastião voltaria por um portal, formado entre duas rochas, num lugar chamado Pedra Bonita. Essa história é baseada num fato acontecido. Cito:

Em 1836, na comarca das Flores, em Pernambuco, João Antonio dos Santos diz que D. Sebastião está prestes a desencantar e que traz riquezas para os adeptos. As autoridades inquietas, ao verem a quantidade de pessoas – que deixavam de trabalhar nas fazendas – seguindo o líder espiritual, conseguem que um padre idoso bastante prestigiado na região disperse o grupo. Entretanto, dois anos depois, o cunhado de Santos, João Ferreira, que se intitula Rei, retoma a pregação e convence os seguidores de que dois enormes blocos de pedra são as portas do Reino Encantado, a entrada do castelo de D. Sebastião que ali desencantará. Aproximadamente trezentas pessoas reúnem-se no local e escutam que D. Sebastião só voltará à custa de muito sangue, sendo necessário o sacrifício de adeptos. A matança ocorre de 14 a 16 de maio de 1838. No dia 17, o próprio Rei é sacrificado, sendo substituído pelo cunhado Pedro Antônio que ordena a mudança do acampamento para um lugar mais distante, pois o ar estava irrespirável devido à decomposição dos cadáveres. Durante o trajeto são surpreendidos por um contingente que abre fogo contra eles. Gritando “Viva el-rei D.Sebastião” e entoando orações e ladainhas, parte do grupo perece, inclusive o novo Rei. Alguns sobreviventes fogem, outros são presos: as mulheres logo são liberadas, os homens permanecem encarcerados e as crianças são distribuídas à adoção.

Em MARTINS, Cláudia Mentz. A história, o tempo e a memória em A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.

Pedra, altar, local de sacrifício. Pedra morada do encantado. A pedra negra da Caaba, em Meca, que era branca e ficou negra por causa dos pecados humanos. "Abre-te, Sésamo".

No Peru, em Cuzco, capital imperial dos antigos Incas, dizem que há uma pedra (entre as incontáveis que formam a arquitetura e a paisagem da região) que, se você bater nela com um bastão, do jeito certo, ela se abre para uma passagem subterrânea que vem dar em São Thomé das Letras, sul de Minas. Nessa pacata cidade mineira, famosa pelos hippies e pelas pedreiras de quartzito, as mundialmente famosas “Pedras de São Thomé”, conta-se a mesma lenda, sobre uma caverna da região que terminaria no alto dos Andes Peruanos.

Eis a pedra de São Thomé:

Indo por aí, entraremos no domínio da gema, da pedra preciosa, do rubi do mago, do Tudo por uma esmeralda, do Diamantes de sangue. Ou da Pedra Filosofal. Aí é onde a pedra é viva, ela pulsa, ela vibra, ela é colorida, ela seduz. Senda rica e pantanosa, que deixo para quem quiser trilhar.

João Cabral não envereda por aí: quer a pedra pedra mesmo, a pedra pelo que tem de mineral, de concreto e imediato. E assim vê o papel da pedra na poesia:

Catar Feijão.

1.

Catar feijão se limita com escrever: joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a como o risco.

A pedra susto, pedra atenção, pontiaguda. O poema pede um outro tempo, quer parar o tempo.

A pedra aparece assim, pedreira, na poesia de Cora Coralina:

Das Pedras

Ajuntei todas as pedras que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta e no alto subi. Teci um tapete floreado e no sonho me perdi. Uma estrada, um leito, uma casa, um companheiro. Tudo de pedra. Entre pedras cresceu a minha poesia. Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores. Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude dos meus versos.

Cora usa, em íntimo tom, uma imagem universal, da pedra como obstáculo, e do fazer dos obstáculos, degraus para uma subida.

Li em algum lugar que o termo Satã, inimigo, em hebraico, originalmente queria dizer pedra, com sentido de obstáculo. A pedra no caminho.

É dito que “com as pedras que me atiras, faço uma escada para subir à virtude”.

Aninha e Suas Pedras

Não te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.

A poeta reconhece que é da pedra, o sofrimento, que se constroem novos poemas, mas pede que Aninha as remova e plante flores. Ela ainda quer derreter a pedra.

Este autor universal, clássico dos clássicos, chamado povo, quer mesmo contrariar a lição de moral da pedra, segundo João Cabral: “Sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada”. O povo contradiz: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. E também: “Pedra que rola não cria limo”.

Se pedra, sê seixo.

Será fado, karma poético da pedra, estar sempre diante da água, seu contrário e sua irmã mineral? “É rochedo contra o mar”, diz o samba. “A onda me trouxe, o vento me leva, quando a onda passar, eu me sento na pedra”, canta o ponto de marujo.

A pedra resiste. Fica nas retinas do Drummond e tona-se inesquecível, insuperável.

O povo conta histórias de Pedro Malasarte. Uma famosa se chama “Sopa de Pedra”. Malasarte aposta com os amigos que a velha avarenta e enxerida vai lhe dar uma refeição completa, sem pedir nada em troca.

Malasarte acende um fogo na porta da velha, monta um fogãozinho e põe ali uma panela, com água a ferver. Bota lá dentro umas pedras. A velha, curiosa, vem olhar. "Quê isso, sopa de pedra?" "Pois sim, minha senhora, fica uma delícia". "Ha! Isso eu quero provar!"

"A senhora verá que é excelente. Porém, sem dúvida que se tivesse um salzinho, e um alho, ficaria mais saborosa..." A velha vai buscar o sal e o alho. "Muito bom! Mas se tivesse também umas batatas..."

E nesse procedimento, Malasartes consegue que a velha traga temperos, macarrão, batatas e até uns pedações de linguiça. Quando a sopa fica pronta, Malasarte atira fora as pedras, e serve a si e à velha. "Mas, ô rapaz, e as pedras?" "Ora, dona, eu não tenho dentes de ferro!"

Malasarte comeu a sopa e foi logo cobrar a aposta.

Termino com um poema da poeta ucraniana, premio nobel de literatura, Wislawa Szymborska.

Conversa com a pedra.

Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. Quero penetrar no teu interior olhar em volta, te aspirar como o ar. — Vai embora — diz a pedra. — Sou hermeticamente fechada. Mesmo partidas em pedaços seremos hermeticamente fechadas. Mesmo reduzidas a pó não deixaremos ninguém entrar. Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. Venho por curiosidade pura. A vida é minha ocasião única. Pretendo percorrer teu palácio e depois visitar ainda a folha e a gota d'água. Pouco tempo tenho para isso tudo. Minha mortalidade devia te comover. — Sou de pedra — diz a pedra — e forçosamente devo manter a seriedade Vai embora. Não tenho os músculos do riso. Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. Soube que há em ti grandes salas vazias, nuncas vistas, inutilmente belas, surdas, sem ecos de quaisquer passos. Admite que mesmo tu sabes pouco disso. — Salas grandes e vazias — diz a pedra — mas nelas não há lugar. Belas, talvez, mas para além do gosto dos teus pobres sentidos. Podes me reconhecer, nunca me conhecer. Com toda a minha superfície me volto para ti mas com todo o meu interior permaneço de costas. Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. Não busco em tu refúgio eterno. Não sou infeliz. Não sou uma sem-teto. O meu mundo merece retorno. Entro e saio de mãos vazias. E para provar que de fato estive presente, não apresentarei senão palavras, a que ninguém dará crédito. — Não vais entrar — diz a pedra. — Te falta o sentido da participação. Nenhum sentido te substitui o sentido da participação. Mesmo a vista aguçada até a onividência de nada te adianta sem o sentido da participação. Não vais entrar, mal tens ideia desse sentido, mal tens o seu germe, a sua concepção. Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. Não posso esperar dois mil séculos para estar sob teu teto. — Se não me acreditas — diz a pedra — fala com a folha, ela dirá o mesmo que eu. Com a gota d'água, ela dirá o mesmo que a folha. Por fim pergunta ao cabelo da tua própria cabeça. O riso se expande em mim, o riso, um riso enorme, eu que não sei rir. Bato à porta da pedra. — Sou eu, me deixa entrar. — Não tenho porta — diz a pedra. SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas: seleção tradução e prefácio de Regina Przybycien — São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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