ORALIDADE
Eu medito: Deus disse, faça-se a luz. No princípio, era o verbo.
Em Santa Luzia eu conheci a realidade da oralidade: um outro jeito de viver. Tudo sabido decor, de coração. Tudo tradicional. Alguém entrou para uma guarda de Moçambique, e, moderno moço, quis tomar nota das cantigas, anotar os passos e evoluções rituais do grupo, pelas ruas da Vila da Aparecida. O mestre não consentiu: Tem que aprender de ouvido, de olho, de coração, com o tempo, com a vivência.
Só assim, como dizia Platão, o conhecimento fica impresso na alma, com tintas que duram, indefinidamente.
COLEÇÃO DE ORALIDADES
O que ouvi e não esqueci:
Tu é doido ou doido mijou na tua cabeça?
Se aqui nevasse cê usava esqui?
Laranja madura, na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé.
Ser doido é pra quem pode...
Caspa, seborréia, União Soviética...
As aftas ardem, doem; as hemorroidas, idem.
Para ser homem completo tem que ter um filho, escrever um livro, plantar uma árvore.
LIVROS
Ao mesmo tempo, há, nesse universo oral, um respeito venerando pelo livro. O modelo é a Bíblia, o Corão: O Livro. Há o poder do escrito - a estela, o monumento, o diploma, o decreto, a lei. Gravada na tábua. Como disse um estudioso, primeiro a gente aprende a língua mãe, fluida e misteriosa, oral. Depois vem a língua pai, normativa, lógica, escrita.
Fala-se o que se quer, ao sabor da serpente: vale o que está escrito.
Certo dia, eu estava no quintal, roçando, e dona Geralda, minha sogra, veio visitar. Num certo momento, quase esbarro numa taturana-bode, lagarta das mais brabas. Aproveitando a deixa, Dona Geralda contou que os antigos diziam que o Diabo, invejoso, perseguia Deus quando da criação do mundo, e tudo que Deus criava, o outro tentava criar igual. Deus criou a borboleta, o outro, a vespa. Deus criou a abelha, o outro o escorpião. Deus criou a taioba, o outro o cansanção.
Eu, ruim, retruquei: não creio! Deus criou tudo, escorpião, barata, verme, taturana, e tudo tem uma função na criação. Nós é que rotulamos “bom” ou “mau” segundo nossos interesses. Para nós, tem erva e tem mato, mas para Deus, tudo é erva.
Minha sogra me censura por eu não escutar os antigos.
Pois bem, passa o tempo e estou a ler o livro do Tavinho Moura, “Maria do Matué, um estória do rio São Francisco”. A Maria, personagem inspirada numa senhora quase centenária, que foi caseira do tio Tavinho no seu sítio em Barra do Guaicuí, a certa altura diz:
Pois é, Deus criou o belo; o outro, encamisado na inveja, quis imitar, só fez trapalhada. Um criou a abelha, o despeitado o marimbondo; a joaninha, o invejoso o carrapato. E assim é: borboleta – pernilongo, peixe- cobra… tudo ciúme, desfeita.
Tavinho Moura. Maria do Matué, pg. 44.
É bem a fala da dona Geralda. Leio para ela o trecho do livro. Ela logo emenda: “Aí: Não falei? Se está no livro, é porque é verdade”.
CASO DE LOBISOMEM
Entrei na loja de presentes do meu cunhado, na rua do Serro, em Santa Luzia. Estavam ali de conversa duas moças, clientes, mais a vendedora e o irmão de minha sogra, tio Totó, um senhor caipira de mão grossa e fala mansa, daqueles mineiros que criam codornas e matam jaguatiricas. E eles falavam de fé e eu, para fazer efeito, declarei-me ateu convicto.
“Mas cê num acredita em Deus não, moço?” disse tio Totó, consternado.
“Nem em Deus”, declarei, “nem demônio, nem bruxa, nem espírito... nada disso”.
“Mas a pessoa deve crer... no sobrenatural. Lobisomem, por exemplo, existe!”
E relatou um episódio.
Episódio passado, segundo ele, em Jaboticatubas, onde houve um lobisomem que, em certa noite de lua cheia, atacou uma jovem senhora que voltava da missa um pouco tardã. A jovem subiu numa árvore, evitando assim o ataque. O lobisomem logrou apenas morder-lhe a barra da saia. A jovem chegou da missa, esbaforida. Seu marido não estava em casa. Ela custa a dormir, escutando longínquos uivos.
Pela manhã, na mesa do café, mulher percebe, entre os dentes do marido, um fio da mesma saia que usava na noite escura.
Tio Totó me jura que o contado acontecido foi, fato histórico, em Jaboticatubas, Minas Gerais.
FARMÁCIA LOBATO
Pois bem. Mil novecentos e oitenta e poucos: Na avenida Oiapoque, em frente à rodoviária, ficava a Farmácia Lobato. Lagoinha, Belo Horizonte, MG. Meu avô era o dono, minha mãe e meus tios, empregados. Meu avô tinha um sócio que vez por outra aparecia na farmácia, homem misterioso que acompanhava meu avô nos negócios, já há muitos anos, desde o tempo que meu avô era meio rico e morava no Espírito Santo. Eu reparava no pomposo anel de régua e compasso que esse homem usava.
Esse homem misterioso um dia me achou, muito garoto, pelos sete anos, brincando com algumas caixas de remédios que ficavam entre a babel de badulaques do estoque, um cômodo escuro e poeirento no fundo da farmácia, que dava para um terreno baldio, cheio de entulho, à margem do rio Arrudas. Para me assustar, incomodado por eu estar ali, o homem me contou uma história de alma penada, uma especie de loira chorona do rio Arrudas que vagava por aquela banda do ribeirão, procurando por um filho que morreu. Estas coisas marcam a gente - adultos irresponsáveis!
Não é bem isso, o que o caso de lobisomem do tio Totó me recordou. É que os fornecedores de remédios dos grandes laboratórios davam presentes, lembranças, brindes, aos seus clientes farmacêuticos, materiais promocionais. E uma certa Companhia Química Rhodia Brasileira um dia presenteou a Farmácia Lobato com uma série de fascículos, impressos em folha boa, em vivas cores, trazendo cada um uma lenda brasileira, acompanhada de duas gravuras, uma do pintor “De Moura”, mais convencional, e uma mais abstrata, pós moderna, do artista “Jordan”. O texto das lendas é de Valentim Valente. Tem o Saci, o Negrinho do Pastoreio, a Iara, as Amazonas, o Boitatá... Na última página de cada fascículo vem a propaganda de um remédio: Estreptalil, Gardenal, Vitaminel, Fenergan...
Um dos exemplares desta coleção trazia a "lenda do Lobisomem". O desenho frontal, do sr. De Moura, mostrava uma mulher pendurada numa árvore, uma criança no colo, e um cão bravo a seus pés, com os olhos vermelhos, um halo sobrenatural a contornar seu porte de rottweiler, e um pedaço de vestido entre as presas. A lenda é a mesma, quase ipsis literis, que o tio Totó me contou.
A conclusão? Lenda não é mentira, é verdade diferente.
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