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Microcontos

Pedro Lobato Moura

Nomes, mentiras

Meu avô dizia que era cínico, no sentido filosófico. Mandava eu buscar na enciclopédia. Eu via a figura de Diógenes em seu tonel. Pensava no Chaves.

Meu avô caiu doente. Dormia, acamado há semanas. Criança, eu à sua cabeceira andava, mais que tudo curioso. Tinha um livro, sobre o criado mudo, e os óculos. Um livrinho velho. Na primeira página, um desenho feito à mão, um cipozinho, de nanquim, e um escrito, em letra ondulosa. Eu ainda não lia, mas senti alguma coisa especial por aquele livro. Vi uma portinha, no fim de um túnel de epilético.

O livrinho estava assinado, o nome do meu bisavô, Samuel Bueno. Este meu bisavô havia morrido jovem, antes dos trinta anos, e havia deixado órfãos meu avô e seus irmãos.

Meu avô melhorou daquela febre. No entanto, três anos depois, morreu. Foi de uma degenerescência cerebral, triste, mas que permitiu a meu avô que nem percebesse seu estado de doente, se borrando, sendo limpo e alimentado pela sua cristianíssima esposa, a quem ele repetidamente traiu e menosprezou, enquanto pôde. A doença tampouco o permitiu saber que morria, morreu com um sorriso bobo. Deus é cínico.

De entre seus quinze mil livros, empilhados no chão de seu antigo escritório, a serem doados para a universidade, me chama a atenção, naquela tarde triste do velório, aquele livrinho velho, o mesmo que meu avô tinha à cabeceira, três anos atrás. Agora, eu já sabia ler. Estava escrito: “Procure pelos passos de São Tomé! Eu encontrei a Terra sem Mal.”

Mito, ou: Já escolhe, de uma vez

Morreu. Encontra-se diante de uma porta.

Em verdade, são duas portas: uma pequena, estreita, e uma grande, larga. Mas já não há escolha: A vida que viveu o terá feito grande ou pequeno.

Perguntas a Eugênia

Quem é que precisa experimentar a aflição do ser imperfeito? Qual o uso, o proveito, a finalidade que se pode dar à experiência de um cisto a crescer, de um dedo a cair, do coração a explodir, das veias a vazar?

Se Deus ou deuses ou almas há, que com estas experiências de viver aprendem alguma coisa, para além da vida de cada corpo único que sente ou lembra, será que os interessa - do Olimpo, do Astral, ou do Underground onde estejam - que a humanidade seja feliz, boa, perfeita?

Eugênia, não sabendo, vamos fazendo.

Ética

Minha crença é como meu nariz: difícil de ver, frontal. Na sabatina, no interrogatório, eu afirmo em nada crer - não espere de mim religião. Observa, porém, de perto, meu agir: verás que há - invisível não obstante guia de tudo o mais – há fé. Há nariz.

Eu ajo segundo a ética de um outro mundo onde se faz justiça. Uma justiça invisível que a meus atos insensatos dá uma chave.

Ética, 2

Ô, otimista de fortes falas. Humano de fortes falhas. Sendo sincero, não passo (na portinha do Senhor) se não me arrancar alguns pedaços da anatomia.

Tal que minha fé, minha ética, conta 50,1 por cento com a inexistência de qualquer juri pós-morte. É doce perder-se no aleatório. Talvez seja isso o perdoar.

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