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  • Pedro Lobato Moura

Microcontos

Se eu fosse água

Se eu fosse água não teria medo. A água penetra, atravessa, dissolve, corrói, fura. Salve sete quedas, vapores, e o arco-íris!

Não temeria me ver preso num buraco escuro, no coração de uma rocha, por milênios, talvez.

O geólogo quer saber a idade das águas. Minerais, isótopos radioativos, gases nobres e plebeus, sais, matéria morta, marcam a água, individualizam a água. E dizemos águas. Salve ondinas e nereidas!

Eu, sendo água, posso estar sujo do medo, do carbono-14, do trítio, da angústia. A música me modela, eu tomo formas, sou como um espelho. A ciência nossa diz que por trás das águas está a água, H2O, pura, incolor, inodora, insípida, só vista em laboratório e inútil para consumo. Idêntica a si mesma, una, um mistério.

Picada de aranha

Embate de fés, eu e a aranha marrom. A prece dela, que o veneno vingue. A prece minha, que minha perna fique.

Eu peço perdão por minha desatenção com a senhora aranha. Não sei se ela chega a tanto.

Destino

Corto os cabelos, para inaugurar o ano. Daniela comenta: “Mãe diz que não se deve deixar os cabelos cortados ao alcance dos passarinhos. Se passarinho fizer ninho com os fios dos cabelos de alguém, a pessoa emburrece”.

Corto os cabelos, também, do sovaco e das intimidades. Redobro o cuidado com os restos - xô, curió!

A droga da verdade

Com seu Aristeu, roçando o quintal. Ele aponta: “Esta árvore, Barriguda. Chá da casca dela corta o mal estar”. Lembro daquele verso da cantoria do Xangai, descansar, morrer de sono na sombra da barriguda.

“Esta erva”, Aristeu continua, “Mijadeira. Boa para os rins”. Tem que ter olho pro mato, né, seu Aristeu? Nomes são poderes - a função de Adão.

Mostro a seu Aristeu o cipó Jagube, amazônico. “É remédio?”, ele pergunta. É sim, para vermes, e todo tipo de panema. Os índios do norte contam que, quando misturado a este arbusto aqui, este que parece café, chamado Chacrona, a decocção destas duas plantas, para quem bebe, faz vir uma luz tão forte, que o ser confessa todos os seus crimes e se arrepende dos pecados, diante do trem tão puro e santo que aparece.

Seu Aristeu encosta a foice, apoia-se nela, fortão aos quase oitenta anos. Desconfia. “Esta luz aí, só Jesus, meu filho”. Rio, depois calo. Não opino. Só relato.

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