Pai árvore
Meu pai virou árvore aos poucos. Aos poucos mesmo, foram cinquenta anos de mutação. Eu me lembro, na véspera de meu aniversário de trinta anos, eu ainda ouvia as opiniões exaltadas sobre a política e as críticas canônicas sobre a música do século XX, é claro que ditas de forma cada vez mais lenta e entrecortada pela tosse constante. Seus cabelos eram já uma basta folhagem verde cinzenta, nenhum membro humano era mais reconhecível, já seria um ênida, meu pai. Há quinze anos não deixava a varanda de sua casa em São Joaquim de Bicas.
A tosse de meu pai, naquela tarde, me dando conselhos sobre minha desafortunada obra musical, não era por causa dos lenhos e veios de pau em que se transformavam seus interiores. Era por que, entre dois galhos finos que ele fazia de dedos, meu pai trazia, ainda, como sempre, aceso, seu cigarro de fumo guarani. Que uma árvore fume não será surpresa, árvores fumam, todos sabemos. Meu pai humano, vivo depois de tanto cigarro e pinga, isso é que era extraordinário. Agora, tornado de vez em árvore, sorve plácido seu gás carbônico, mas é certo que, assim, ainda verá batizados e enterros de muitos parentes.
Natureza, pureza prístina
Eu não tenho comparecido mais aos banquetes de Elfos onde, ambrosiado, ia longe com as canções e as estórias da bela gente. Consigo agora ser um cara normal. Parece que isso é importante. Assim, faz tempo que não vejo Tom Bombadilo (o caminho até ele, um dos melhores tesouros que meu pai me deixou). Que não visito Miryligus no jardim fechado à beira do Sirimim. Vai indo – é sorrateiro, é gradual, mas é inevitável – vamos nos encaixando no império romano (nosso de cada dia nos dai hoje). E o bem e o mal tomam conta da nossa vida. E somos expulsos do nosso jardim. Ser adulto é ter perdido e sobrevivido, e teimar.
Tenho uma filha, não posso me esquecer nunca: a chavezinha do jardim secreto.
Medusa minha mãe
Antigamente a pessoa caminhava por trilhas na mata, beira riachos, riba montes, e podia de súbito ser apanhada por uma musa, uma ninfa, um fauno, um vento norte, ou a alma de alguém que já morreu. Segundo consta, nessas horas os gregos cobriam a cabeça. E as mulheres descobriam – o que sempre foi muito perigoso.