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LIVRO DO CIGANO

 

Preâmbulo

 

Estava eu em danada pindaíba, faltando dinheiro dos quatro elementos – conta d'água, conta de luz (fogo), aluguel (terra) e conta de telefone (ar). Assim, em busca de solução, dei com o Cigano.

 

Conheci o Cigano numa sessão de ayahuasca, em Pará de Minas. Eu tocava o violão, foi sessão de muita força, lembro que apenas nos apertamos as mãos no final. Havia muitas pessoas ali que eu não conhecia. Seu nome é Altamirando. O meu é Pedro. Na ocasião, ele me contou uma pequena história, sobre um homem que põe cera de abelha nos ouvidos, para colher a baba de um pássaro cujo canto transforma os homens em pedra.

 

Não muito depois, fui ao centro da cidade – Belo Horizonte – fuçar revistas em quadrinhos, num sebo da Praça da Estação. Saindo do sebo, escuto “psiu!” – Vinha de uma loja ao lado. “Ei, meu camarada! ” – Era o Cigano. Tinha ali sua bitaca, onde vendia peças para artesãos – sementes, miçangas, cordões. Batemos longo, esotérico papo.

 

Então, alguns anos passados, eu já morando em Santa Luzia, eis que descubro que o mesmo Cigano é meu vizinho. Encontramo-nos por um acaso, eu passando em frente à sua casa, ele com seu chapéu. Ele me convida a entrar, me mostra o lugar. Na entrada, junto ao muro da frente, uma pequena área coberta, um puxadinho que serve de garagem, onde ele guarda seu uninho 98, e serve também de estoque – caixas e mais caixas empilhadas em prateleiras de metal, contendo todo tipo de objetos que o Cigano comercia. Ele mostra, explica, diz que tem uma história para cada semente, cada pedaço de osso, cada tipo de crucifixo, cada óleo, cada madeira, cada metal.

 

Entre este puxado e a casa propriamente, há um quintal gramado e no centro dele um pé de jabuticaba, das gordas. Muda de Jaboticatubas. Há várias moitas de ervas, remédios, temperos. À esquerda, rente ao muro, um orquidário, simples, diverso, bem cuidado. No fundo do lote está a casa, de médio porte, dois andares, casa boa. Na cozinha, em tudo feita e enfeitada lembrando roça, ele me serve café, queijo e doce de mamão, de sua terra, São Gonçalo do Pará. Na parede, uma pintura representando a igrejinha de São Gonçalo, uma foto desbotada de um padre Moacyr, benzedor querido na região, e ao lado uma folhinha Seicho-no-iê, com um pensamento edificante para cada dia do ano.

 

Cigano morou em muitos lugares, ele conta. Em Belo Horizonte, durante muitos anos. Em Goiás, durante outros tantos, possui um lote por lá. Morou nos Estados Unidos, ano e meio. Em Santa Luzia mora, há uns cinco ou seis. Compraram esta casa, ele e sua companheira, Fábia. Estão juntos há mais de quinze anos. Ainda coabitam, porém não mais se falam, estão em litígio, processo de separação. Via de uma imperdoável traição dela, segundo Altamirando. Ele quer comprar a parte dela, ofereceu justo montante, ela não aceitou sua proposta, ainda. Seguem morando juntos, separados.

 

O pai de Altamirando era cigano de vera, dente de ouro, carroça, Santa Sarah, Cabala - sem morada fixa, caixeiro, catira. Quando era pequeno, Cigano viajou muito, em lombo de burro, com o pai, Brasil afora. De Minas Gerais, conhece cada palmo. Hoje, seu povo está quieto em São Gonçalo, onde o pai se batizou, casou na igreja e sossegou. Um irmão é funcionário público, em Belo Horizonte. Uma irmã é casada com um rico fazendeiro.

 

Ele quer saber de mim, minha história. Ficou impressionado, naquele trabalho com o Daime – com minha “espiritualidade”. Conto-lhe que sou recém-formado em Letras. Estudei Belas Artes um tempo, na Federal de Minas, mas não terminei o curso. Hoje dou aulas avulsas, enquanto espero ser chamado num concurso estadual que fiz e tirei primeiro lugar. Mudei-me para Santa Luzia devido a uma paixão, que virou casamento, minha Daniela. Gosto de livros, gosto de música, tocar violão. Tenho mania de ser poeta e, desde pequenino, desenho.

 

Cigano diz que é colecionador de arte, quer ver meus trabalhos. Conto que sou de família de artistas, entre eles um violeiro genial, o Tavinho Moura, músico premiado, parceiro do Milton Nascimento e do Fernando Brant. Cigano se anima, “Sei, é um que tem um sítio em Várzea da Palma?” É, esse mesmo. “Conheço muito. Quer dizer, não pessoalmente: Conheço a fama”. Canta: “Meu facão guarani quebrou na ponta, quebrou no meio...”

 

Cigano me olha de cima a baixo: “És um rapaz de cabedal”, ele diz, sempre meio irônico. Digo, pois sim, porém, pobre. Cito a pindaíba. “Pindaíba é vara de pescar”, ele diz. Pensa, fazendo um trejeito com os lábios. “Façamos um pacto, você me ajuda, eu te ajudo”. Pois sim?

 

Ele tem um espaço em sua casa, o andar de cima. Um grande salão coberto, com um belo vitral, dois pequenos banheiros ao fundo, um varandão de madeira, com água e açúcar para os beija-flores que avoam por ali o dia inteiro, e com linda vista para a Serra da Piedade. Ele deseja alugar este espaço, para fins de melhorar o mundo. Ele anda muito preocupado com o alto índice de depressão e suicídio na sociedade moderna, “principalmente depois que a Igreja Católica aboliu a confissão”, ele diz - e quer ajudar as pessoas. Procura professores de ioga, rezadores de terço, professores de meditação, de dança, de tai chi chuan, psicólogos, palestrantes espíritas, médiuns, pajés – quem quer que tenha disposição de fazer o bem, ajudar o próximo. Até mesmo algum evangélico, desde que não encrespasse com a linda Virgem da Conceição que, em pintura e aura, orna o local. Segundo Cigano, o bairro é cheio de velhinhos precisando de atividades, jovens precisando de aula particular. Sugere que eu poderia ajudá-lo a administrar o empreendimento. Atividades físicas, ocupar a mente e ajudar a quem precisa, são os melhores remédios para a depressão.

 

Cigano me olha - seu olhar de raposa, sua voz grave e forte, seu porte alto, um sotaque indecifrável, uma risada contida mas que quase derrama, um jeito de contrair os lábios e fazer um beicinho. Ele se diz um sujeito antissocial, por demais simplório, muito ele mesmo, duro. E está ficando velho. Precisa de um alguém como eu, um professor de línguas, jovem, bem-apessoado, articulado, para lidar com as gentes bacanas que ele almeja atrair.

 

“Enquanto este projeto não acontece, você pode me ajudar tecendo uns colares, para eu vender nas praias da Bahia, no fim do ano. Também tenho um portão para pintar, um telhado para consertar, e muitas caixas de miçangas para organizar. Serviço não falta!” Ele me fala de outros camaradas, que ele ajudou, mas foram desonestos, de um jeito ou de outro. Terei sucesso onde aqueles falharam? Penso, e resolvo: Está certo – trocaríamos patrocínio.

 

Para selar o pacto, à moda antiga: uma dose de Salinas.

 

Começo a visitá-lo, alguns dias na semana, vou pintando o portão, ajeitando as caixas, arrumando telhas que saíram do lugar na última tempestade, pegando uns caraminguás. Um cascalho. Às vezes – quando ele quer – apenas nos sentamos na varanda, tomamos uma cerveja, fumamos uma diamba, comemos um queijo e ficamos a tecer colares e prosas.

 

Cigano coleciona assuntos, é um homem de falas, um amante de anedotas. Começo a tomar nota de algumas que ele conta.

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