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  • Pedro Lobato Moura

Aguamento

Atualizado: 27 de abr. de 2021

Esse menino tá é aguado, disse a idosa de pele escura e lenço na cabeça, com a ênfase no -u- mais longo, a-gu-a-do. Kora não cria nessas coisas, na língua dela o nome disso é frescura. E aperta mais o pulso do Diogo, esticando a línha tenue entre a mãe que ampara e a mulher que odeia. O onibus chacoalha, está cheio, mãe e filho estão de pé, o menino tem nove anos e cara de nuvem. A senhorinha, sentada com elegância a despeito dos solavancos, sorri para o menino.

Enquanto o rico desperdiça os sim que lhe sobram, ser pobre é tirar umas gotas de talvez dos maciços de não que compõe a paisagem. Diogo desejaria se empanturrar de brigadeiro, mas na festinha do primo rico, teve de esperar lá atrás na fila para comer um só. Todo mundo é personagem de um mito. Todo mundo tem um mito que explica como ele foi parar ali. Como Diogo foi parar na merla? Diz que tudo começa com um aguamento... Como evitá-lo, no país mais desigual desse mundo desigual?

Há os mestres da oralidade, que os livros tentam capturar: Nasrudin, Jesus, Buda, Pitágoras; seus ensinos pairam no ar. Também há mestres escritores de livros, como Darwin, Freud, Einstein, Marx, que embora sejam pouco lidos - ler é para poucos - ingressam na oralidade pela força poética de suas ideias. Assim falamos que fulano é alienado, que tempo é relativo, falamos em se adaptar ao meio, falamos em fissura, ego, inconsciente, recalque. Kora precisa não crer na oralidade, pois os privilégios da escrita a sustentam. Precisa não crer em antigas maldições. Gente de nossa classe não benze, faz terapia. Freud explica, o aguamento.




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