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CALANGUINHO E O CORAÇÃO DE ESMERALDA

Pedro Lobato Moura

Atualizado: 6 de abr. de 2021


A fazenda, o morro, a Mãe do Ouro


Eram dez hectares apenas, algumas minas d’água parindo um corguinho, pastagens, tufos de mata e um morrão no fundo, um rochedo gigante, ponta oeste da Serra do Intendente. O paredão faiscava dourado no final do dia, feito as pirâmides do Egito. Dali se dizia, na região, que partia a Mãe do Ouro, rastro de luz, fogo dourado correndo feito busca-pé entre as palmeiras do cerrado, aparição que surpreendia os viajantes noturnos e que, conforme a origem e mitologia da pessoa, matava, roubava a alma ou era sinal de sorte, riqueza, tesouro escondido ou era recado dos antepassados ou fenômeno de seres de outro planeta.


O dono da fazenda, sem companheira nem prole, certo dia morreu. Os empregados se foram e a fazenda ficou prontinha para se tornar ruína, que viessem os matos. A propriedade, papel passado, quedava em litígio de longes parentes, no fórum lá de Sete Lagoas.


A família de calangos, calango pai, calango mãe, calango tio, calango filho, calango filha


Ah, os fatos. Deus preferiu Abel. Por quê? Só Ele sabe. O fato é de Deus, a explicação fica para os homens. Alguma coisa avançou lá em Sete Lagoas, de repente se soube que a fazenda tinha novos donos. Certa tarde modorrenta de agosto, chegou alevantando pó um fusca verde metálico, com cinco pessoas dentro. Era um pessoal branquelo, magrelo, do cabelo claro, comprido de corpo e esquisito, muito parecidos uns com os outros. O fusca parou debaixo da sombra da gameleira em frente à igreja, saíram os cinco, ficaram olhando o entorno, as casinhas simples e poucas do lugarejo, a igreja, a venda do seu Matias, o paredão bonito no fundo da paisagem. Eram, por sua vez, observados pelo povo do lugar, povo que já se estranha a si mesmo, quanto mais… logo ganhariam o apelido de calangos da fazenda Mãe do Ouro, certamente pelo jeito de o calango pai gaguejar e balançar o pescoço, além do sotaque, mais estrangeiro ainda que o carioca, que alguns puderam observar quando o homem adentrou a venda de seu Matias pedindo por pilhas e água mineral, enquanto o resto da família, que o povo supôs serem calango mãe, calango tio e um casal de jovens calanguinhos, ficou perto do carro. O homem pagou em notas de real, não quis sacolinha de plástico e levou tudo nos bolsos da calça de linho cinza-escura que esvoaçava, sobrante, mal preenchida pelas pernocas magras daquele ser curioso.


Depois disso, montaram os calangos no fusca e seguiram no rumo da fazenda, cruzando a porteira e não sendo mais vistos por ninguém, nos dias que se seguiram.


A menina moça


Seu Matias, dono do Armazém de Secos e Molhados São Juscelino, era pai de uma menina moça, principiando a ser mulher. Florinda Matias. Até onde o velho e sua senhora conseguiam avistar, era moça boa, até boba, fácil de lidar. Somente as coleguinhas da escola é que sabiam do espírito inquieto que era Flora, Florinha, como era chamada.


Um dia, Flora viu o Calango filho, moço que devia ter a mesma idade dela, sem nem um fio de barbicha ainda, embora tão alto, sentado sozinho no banco da praça. Deu na moça súbito ímpeto de sorvete e ela passou pelo rapaz na ida e na volta, chupando picolé de maracujá, fingidamente à toa.


Outro dia, Florinda e a melhor amiga fugiram da escola e foram ver as nuvens na beira do rio. A amiga foi embora, Flora quis ficar um pouco mais. Cochilou, embalada na paz das águas. A seu lado, a brisa folheava as páginas do livro de ciências naturais.


O investigador

Aff, que o nosso lugar periga ficar interessante, disse seu José Lavrador quando viu entrar na venda do seu Matias, naquela mesma tarde em que Florinda deveria estar na escola, mas não estava, um homem da cidade, todo perfumado, mochilão nas costas, chapéu de grife, perguntando por pousada. Veio turista? E o homem foi logo se abrindo, sou investigador de fenômenos ufológicos, pesquiso aparições e abduções de seres de outros planetas, extraterrestres, etês. Algum dos senhores já avistou a Mãe do Ouro? Não obteve, como resposta, mais que pigarros, o homem de Belo Horizonte, mas o interior de Minas é assim mesmo, não se abre de cara, que tivesse paciência, todo mundo sabe de alguém que viu, todo mundo terá uma história para contar. Indicaram a pousada de Dona Cláudia. O homem, saindo, acrescentou, não se acanhem, não sou maluco, faço mestrado na Universidade Federal. Tiveram o respeito de rir só depois que ele saiu.

A menina e o calanguinho no pasto

Flora despertou sem sobressalto e percebeu Calango Filho a seu lado, na grama na beira do rio. O rapaz lia o livro de ciências, aberto no capítulo sobre fungos. Ela assustou, mas nem tanto. Calango Filho perguntou, gostaria de conversar com o Sol? E deram-se as mãos e foram passear pelo cerrado, não temos os detalhes.


A aparição da menina para os garimpeiros

De noite, Florinda, nada. Seu Matias cismou. Sá dona Matias não dormiu.

Na manhã seguinte, três garimpeiros, vindos de longe, do sul, subiam o rio. Ouviram um canto perturbador de mulher misturado no rumor das águas na pedra. Logo avistaram uma moça, em roupa colegial, os cabelos soltos, sentada num rochedo no meio do rio, parecia uma mãe d'água, um dos homens até se benzeu. Era Florinda. Ela passava a ponta do dedão na superfície do riacho enquanto cantava para o nada. A menina custou a se dar pela presença dos homens. Quando se deu, fez uma cara triste e disse, Calanguinho se foi...


Calanguinho me levou para ver o Sol, o Sol mora num castelo. Ali, cinco pessoas muito compridas e verdes vieram me ver, me deram de beber, cuidaram de mim, eram transparentes que nem lagartixas e seus corações eram esmeraldas enormes que pulsavam, movimentando o líquido verde brilhante que corria nas veias deles. Os olhos eram muito pretos. Mesmo assim, era muito bom, apesar das agulhas...


Os homens deixaram a menina na praça da vila e seguiram, com suas mulas, subindo o rio no rumo da fazenda assombrada.


A menina repetiu a mesma história para Matias, seu pai e sua mãe. Eles ficaram muito preocupados, mas não deixaram transparecer, cobrindo a menina de mimos, goiabada e bolo de fubá. Depois, ela dormiu 9 horas seguidas e acordou sã.


A ação


A história não demorou a correr a cidade e o tal senhor investigador tomou tento. Procurou o seu Matias, tinha uma teoria: a família de estranhos que havia comprado a fazenda ou sabia de alguma coisa sobre extraterrestres ou eram extraterrestres eles mesmos. O relato da menina, ou o que dele recordavam senhor e senhora Matias, pois Florinda afirmava não se lembrar mais de nada, o relato combinava muito bem com outros tantos nestas Minas Gerais a fora. Os estudiosos chamam isso de abdução. Não custava checar. Seu Matias pegou a garrucha e partiram, ele e o investigador, dispostos a pular a cerca dos calangos e saber das verdades.


Alcançaram a velha sede da fazenda. A porta da frente já estava arrombada, entraram feito polícia, checando quarto por quarto. Seu Matias bufava e a garrucha tremia e o investigador filmava, um passo atrás. Alcançaram o fundo da casa, a porta da cozinha aberta dando para o quintal. No quintal, quatro corpos banhados de sangue, calango pai, calango mãe, calango tio e a calanguinha menor. Todos tinham os peitos abertos a facão e seus corações não foram encontrados em lugar nenhum.


A menina Florinda vinha correndo atrás da dupla e chegou no momento em que seu pai e o ufólogo estavam de cócoras, examinando os corpos mais de perto. Seu Matias quase atira na menina, no susto. Ela olhou para o morro faiscante, para a Serra do Intendente, suspirou e disse apenas: Leva eu, calanguinho...



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