Quando vieram de Portugal o coronel Não-Interessa e família civilizar parte das terras à beira do Uaimií - o Rio das Velhas e mais seus afluentes Taquaraçu e Jaboticatubas - os Guaianases, índios locais, haviam feito acordos e casórios com velhos mamelucos e novas mamelucas advindos das bandeiras de Fernão Dias e Borba Gato e assim, a região gozava de certa paz com os índios. Havia, no entanto, muitas onças, jaguares e jaguatiricas pelos matos, dificultando a expansão da lavoura e as criações de bichos. O pessoal dizia que as onças eram comandadas por um pajé, homem-jaguar, muito bravo, guerreiro indomável, de parte com o encantado.
O velho Não-Interessa não era nenhum bobo e sentia na pele os prejuízos da onçaria geral. Não se faria civilização naquele lugar, ele dizia aos companheiros de trago na bodega local, sem primeiro uma operação de desonçamento. Os caboclos da terra se recusavam, benzendo-se de medo do homem-onça. Cães não davam conta. Alguns mercenários e pretos d’África tentaram e até hoje não retornaram. Domingo à noite, quando foi a hora da missa, o coronel foi coçando a cabeça, chapéu amassado na outra mão, junto a esposa e dois filhotes, pensando em quantos homens teria que matar ou pagar para poder retornar a Portugal.
O acaso, ou a sincronicidade, como nuvens no espaço ou o canto dos pássaros, formam figuras que nos afetam, mesmo que não haja uma intenção por trás delas. Naquele princípio de noite úmida e quente de domingo, as cigarras e os grilos berrando, o padre, por razões alheias ao nosso caso, decidiu-se por uma leitura do Gênesis, sobre a tentação e queda do homem por via da mulher mancomunada com a serpente. O trem do fruto. Feito atingido por um raio, o coronel Não-Interessa, patriarca de uma prole ainda insuspeita de Não-Interessinhos que se espalharão feito abóboras pelo futuro do Brasil, compreende.
Na segunda-feira, o coronel, bem vestido e a cavalo, foi a Sabará. Galgou à luz do dia um caminho de pedras que seu cavalo era acostumado a galgar no breu da noite. Foi até a mais infame casa de mulheres públicas de toda a região das Minas procurar por Zama, a Cigana, alívio e perdição de todo aspirante a barão que o reino desovava, cada vez mais, naqueles sertões tão virgens. Dona Zama, filha de um cigano com uma negra de guiné, era famosa não só pelas artes de Afrodite, pelas ancas, pele, lábios, mas também porque curava unhas e arrancava parasitas e fazia um caldo de mocotó melhor do mundo. Ainda assim, era uma desclassificada e embora o senhor N-I houvesse-lhe oferecido bastante dinheiro, não foi de bom grado que deixou-se levar a rainha do Sabarabuçu ao arraial do Rio das Velhas. O coronel mandou preparar-lhe um banho de perfumes e depois largou-a, com um samburá que continha um litro de cachaça, uma galinha, uma panela de barro, uma faca, cuias e temperos, diante da picada que a levaria mato dentro, ao território rochoso do pajé-onça.
Dez dias depois voltou, mais bonita do que tinha ido, Zama Cigana, a meretriz, as bochechas em brasa. E aí, como foi? Montei rancho, preparei um caldo com farinha de mandioca, o homem veio, primeiro nas quatro patas, depois de pé. Bebeu, comeu e me comeu, sete dias sem parar. Enfim, cochilamos, depois de um gozo louco em razão do qual viverei o resto de meus dias a suspirar. Quando o pajé acordou, afastou-se um pouco no mato para mijar, deu com uma onça, não se alarmou, era sua velha amiga, mas a bichana não lhe reconheceu o cheiro e adeus jaguaromem, ai ai...
O senhor dom Não-Interessa Alcunha sorria, carinhando a própria barba. Pagou a dama. Não era bobo nada. E foi assim que começou o desonçamento na região.
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