Eu ia ao fundo do quintal ver meu pai, Barbárvore, sempre que ele vinha, vagamundo sazonal. Da janela do seu barraco de madeira, entre pitangas, laranjas, jacas e jabuticabas, espiávamos ela se banhar na fonte, entre ninfeias e lírios, bromélias e papiros. Ele era namorado dela, embora eu nunca os visse juntos, ela sempre na fonte, tão nua e transparente, ele sempre coberto do pó da estrada, cheiro de folhagens amassadas, calos nas mãos, pele grossa, fungo nas tranças. Quando eu crescesse, também seria namorado dela, meu pai dizia.
As sombras e as luzes da casa grande de alvenaria, firmemente assentada naquele normal de rua calçada e caixa postal, não alcançavam as manhãs ou as tardinhas que passávamos naquele pedaço do Jardim Original, que algum jardineiro preto plantou para alguma bisavó minha que nunca o mereceu. Tom, meu pai, brandia sua violinha, trovando zombarias das medalhas do meu avô, dos mandamentos ácidos do Deus de vovó, dos extenuantes progressos empresariais dos meninos da família Andrada, evitando falar de minha mãe, que tantos castigos sofria por um dia ter vindo aqui e tomado chá com esse velho elfo que eu chamo de pai.
Meu avô, pai de mamãe, lascivo, macho, bíblico, via-se em meus olhos – ele também não teve pai, me contava, as mãos nos meus ombros. Crescei e multiplicai. Eu era o primeiro neto. Ganhava brinquedos, refrigerante, revistas de sacanagem. O seu Andrada morria de medo que eu fosse como mamãe, Kora Franciscana, que desdenhara os panos finos da família, posição que tanto sangue aos nossos houvera custado, e muito mais aos bugres que se levantaram contra nós naqueles sertões primitivos. Tantas barragens construímos! Kora desdenhava tudo aquilo e ia dançar batuque na senzala, ia namorar os remanescentes daqueles mesmos bugres teimosos, vestida de miçangas, nessa bagunça Brasil. Quando foi pega panfletando para o Partido Comunista, em meados de 1972, seu pai, enfim, interveio. Hoje minha mãe está mansa, encarcerada na bolinha azul de manhã, bolinha rosa de noite, secretária da Andrada SA.
A gente seria para sempre um pouco triste, pelo rumo das coisas, essa engrenagem massacrando tudo, esse passa-anel-de-nibelungos sinistro que os homens brincam, tratorando os nativos em todo canto que eles alcançam - e nós, os videntes, é que somos os loucos. Nem o Mestrim Mirilygus, tão completo em si, sempre bem-te-visto, sempre amigo do gato, amante da mãe do rio, pode ficar alheio ao presente tempo, suas notas de sofrê lamentam, lindas. Adeus, meu pai, nunca te esqueço, gorro de céu, jaqueta de natureza.
No enterro do velho Andrada, morto aos cento e três, lá estava eu, portando bandolim. Minha mãe até cantou, havendo trocado as bolinhas por maconha. O mundo ficou tão doido, vô, que, nesse derradeiro peido da humanidade, suspeita-se, entre as nações, que meu pai, o duende, possa ter razão.
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